quinta-feira, 23 de outubro de 2008

“Gracias”, o agradecimento ao positivismo



Omara, a embaixadora de Cuba

Omara esteve em Lisboa para um concerto inesquecível. Há quem fale de falhas técnicas e de que a voz dela já não é o que era. A verdade é que a diva cubana de 78 anos tem uma presença invejável e ritmo na alma.

Omara Portuondo nasceu em Havana em Outubro de 1930, filha de uma senhora de boas famílias e de um jogador negro da selecção cubana de basebol. Começou a sua carreira aos 15 anos, como bailarina no Tropicana Club. Depois de alguns anos com o “Cuarteto D’Aida”, com a sua irmã Haydee e com Elena Burke e Moraima Secada, gravou “Magia Negra”, o seu primeiro disco a solo. Só deixa de cantar com o quarteto em 1967, altura em que começa de facto a sua carreira a solo. Entre os anos 50 e o lançamento de “Gracias”, contam-se 23 álbuns. Em 1996, faz dueto com Ibrahim Ferrer, no álbum “Buena Vista Social Club” e aparece no filme de Wim Wender, ao lado de artistas excepcionais como Compay Segundo, Ibrahim Ferrer, Rúben González e Eliades Ochoa. Há uns tempos, antes de um concerto no Teatro Nacional de Havana, disse que a presença deles em palco é constante e que os lembra sempre que está em palco. É inevitável, também para o público, recordar essas imagens. Agora, Omara é acompanhada por uma geração de músicos mais jovens.

A sobrevivente do Buena Vista continua a desfrutar do sucesso internacional do disco gravado há uma década, sob a direcção do guitarrista norte-americano Ry Cooder. Contudo, não foi o Buena Vista que lhe deu a fama, ela não estava esquecida, muito menos era ignorada, mas o filme catapultou-a para o sucesso, isso é verdade.

Na passada quarta feira presenteou Lisboa com um concerto brilhante. Entrou em palco a dançar, com uma fita e flor no cabelo, com um vestido leve, de cor clara. Rapidamente conquistou a sala que a aplaudia. “Gracias” é o seu mais recente disco, serve para agradecer ao mundo a sua energia e agradecer àqueles que a acompanharam em 60 anos de carreira. Após a primeira música, com o nome do álbum, Omara continuou avançando ao longo da noite por ritmos mais cubanos, até porque os músicos são todos cubanos, excepto o guitarrista de origem brasileira.
Portuondo canta de uma forma que por vezes chega a ser teatral, de tão expressiva, representando as histórias e os sentimentos que vai recordando através das letras das suas canções. Apesar de ser uma diva, um dos factos mais notáveis durante o concerto, foi o reconhecimento que Omara faz aos músicos, destacando-os e dando-lhes espaço para os seus solos e incríveis momentos de liberdade criativa. Destaque para o pianista, aplaudido de pé, pela sua intensidade e qualidade.

Omara foi pedindo a participação do público, mas as indesejavelmente típicas palmas pareciam quebrar aquela mística que se vivia em palco. As vozes dos rapazes que acompanham a cubana foram-na fazendo rodopiar e dançar pelo palco. À quarta música Omara sentou-se numa cadeira. Não penso que estivesse cansada, apenas se encostava para alguns minutos mais intimistas. A certa altura sai do palco e deixa os músicos brilhar durante mais algum tempo, para depois regressar e ficar apenas com o guitarrista, num momento em que recordaram sons do Buena Vista Social Club. Entramos num novo universo e ficamos colados àquela visão. A banda volta e a energia cubana espalha-se pela sala. Quase que estávamos presos pelas limitações das cadeiras, mas Omara desafia finalmente o público a levantar-se e dançar. Bendita Omara. Que inquietude. Até o segurança da Aula Magna dançava, meio direito, mas era inevitável reparar no sorriso de quem estava a viver aquele momento de luxo. Já em encore presenteia-nos com “Besame mucho” e “Guantanamera”, com todo o auditório a cantar. Duas horas de intensidade.

A embaixadora de Cuba não veio para uma despedida. O segredo é exactamente esse, como disse recentemente em entrevista: “Tem sido tudo tão positivo, porquê parar?”. Como muito chocolate (talvez estejamos no bom caminho…) e quando se tem saúde e se adora a natureza, quando se adora o ser humano e se é positivo, a vida é incrível e a vida tem sido muito generosa comigo.” De passos incertos e voz intensa e emotiva, Omara promete continuar a cantar. E nós agradecemos.
ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)
Créditos das imagens: Tomas Miña

Tudo o que é bom acaba rápido


Coreografias metafóricas

O Teatro Camões recebeu a estreia de dois novos bailados, esta semana. Na abertura da Nova Temporada 2008/09, a Companhia Nacional de Bailado desafiou dois coreógrafos contemporâneos para criarem duas obras originais com bailarinos da CNB: o português Rui Horta e o romeno Edward Clug. "Come together" marca a estreia do coreógrafo Rui Horta na criação para o elenco desta companhia. "Four reasons", de Edward Clug, completa o programa. Ambos contam com música original e ao vivo, uma mais-valia que só aumenta a ideia de “imperdível”. As coreografias podem ser vistas em escassos quatro dias. Até sábado portanto. Ainda pode ver hoje às 21h ou amanhã às 16h e às 21h.


A unicidade destas duas coreografias é marcante. Em “Come together”, Rui Horta trabalha uma das suas temáticas mais marcantes - a posição do indivíduo na sociedade e aquilo que representa. Concebida para um elenco de 12 bailarinos, esse foi um dos “problemas”, no sentido de diferença, no processo de criação, uma vez que está habituado a trabalhar e a criar num ambiente mais intimista, com núcleos criativos mais pequenos. O próprio coreógrafo entendeu este desafio e apostou nele, vivendo-o em grande gozo, apesar de sentir esta diferença de uma forma antagónica relativamente ao que está habituado a fazer. Rui Horta sai da sua cápsula e explora este universo fora da sua escala mais pessoal.


“Trabalhar com a CNB é, de alguma forma uma metáfora desta mesma contradição, um desafio que eu abracei com entusiasmo. Acredito que a única forma de resolver esta equação é a ideia de colaboração e trabalho de equipa, onde o próprio grupo é comunicante e criativo. Tudo se joga no dia-a-dia, no estúdio de ensaio, e na capacidade de, em conjunto, encontrarmos estes mesmos espaços de criatividade e jubilação.” Este texto do coreógrafo possibilita-nos a tomada de consciência daquilo que procura quando aborda a relação do indivíduo com a sociedade. A equação de que fala é a do espaço singular do ser humano, no contexto singular em que vive ele próprio, inserido num conjunto. A ideia de conjunto é não só o “grupo”, ou os vários grupos sociais, económicos e culturais, mas também a sociedade enquanto organização e enquanto conjunto emocional. Como funciona a relação emocional e organizacional do indivíduo dentro desta máquina? De que forma somos condicionados pelo mainstream, pelas tendências, pelos limites que nos são impostos, ou que são apresentados como naturais? Como é que esta “organização” condiciona as nossas decisões e reduz as nossas escolhas e liberdades? De que forma podemos continuar a estimular a nossa originalidade e criatividade, que afinal é esperada, mesmo por aqueles que nos limitam?


A posição do indivíduo, com o seu espaço de identidade, no seio de sociedades profundamente organizadas, é um tema que atravessa recorrentemente o trabalho de Rui Horta. Além dos bailarinos são usados outros elementos em palco: o vídeo e a música. O vídeo volta a ser explorado em cena, dando "corpo" ao cenário e à iluminação.
A coreografia conta com música original de Tiago Cerqueira e tem a particularidade de, em determinado momento, ser co-criada por Mário Franco, um dos bailarinos da companhia, que também é contrabaixista e que a interpreta ao vivo. "Fui à procura desse momento de autenticidade em que numa companhia de bailado há também um músico, que, ao longo desta peça, sobressai em várias personalidades fortes".


Quanto à peça musical "Four reasons", que dá o nome à criação de Edward Clug, é uma composição de quatro sonatas para piano e violino da autoria do esloveno Milko Lazar especialmente encomendada para esta nova criação coreográfica. A música é interpretada ao vivo pelo próprio compositor e pela violinista Jelena Zdrale. A partir da interacção dos dois músicos com os oito bailarinos, a peça vai-se desenvolvendo, como se fosse um desfile surrealista, construído por imagens que quebrem a realidade a que estamos habituados, pelas diferentes dimensões e contemplações. Neste dialogar de movimento e som são explorados espaços comuns, permitindo aos intervenientes, bailarinos e músicos, reflectir e criar aí um momento de intimidade, relacionado com as suas experiências espontâneas em palco.
O ambiente e o espaço são moldados pela dança, pelos corpos dos bailarinos. Edward Clug refere que a coreografia "se desenvolve como se fosse um desfilar de vários quadros surreais que quebram a nossa realidade e levam a nossa mente para algures, flutuando através destes quadros".

Ambas as peças nos transportam para reflexões sobre a realidade e a sociedade. Uma será mais crua, explorando a relação entre o indivíduo e o contexto em que se insere; a outra funciona mais como viagem ao surrealismo, às emoções espontâneas que se criam em palco.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)

Legenda da imagem: Bailado Four Reasons; créditos de Rodrigo de Souza

Rock Folk de Outono


Aimee Mann esteve no Coliseu de Lisboa no passado sábado para um concerto feito de melodias suaves compostas na sua guitarra e cantadas pela sua doce voz. A sala não estava cheia, o concerto não foi muito longo, mas teve a duração certa para encantar e deixar vontade de ouvir o álbum. Simpática e comunicativa, Aimee foi contando as suas histórias, numa noite quente de Outono, num tom rock-folk.
Antes da entrada de Aimee Mann, Tiago Bettencourt apareceu a solo, para umas canções à guitarra e ao piano. Uma boa surpresa, principalmente a versão lírica e ao piano de “Chaga” dos Ornatos Violeta.


Depois de ter deixado o palco, com uma “desculpa” de tom humorístico de que a Aimee já o estava a chamar, o palco foi preenchido pela loura de sorriso simpático e ar descontraído. Ela já tinha estado nesta mesma sala durante o ano de 2007 e regressou, dizendo que esta era um dos sítios que mais gostava. Estes elogios vieram na continuidade do que foi dizendo à imprensa nas mais recentes entrevistas, que realmente gosta desta cidade. Natural. Já na faixa dos 40 anos, Aimee Mann é uma mulher esguia e com atitude em palco. A sua voz é acompanhada por dois teclistas, um baterista e um guitarrista, e ela funciona como um membro da banda e não como uma estrela. Ela é profissional e isso passa para quem a vê. Não é mau, nem todos os artistas têm de ter alto carisma ou um mistério no seu olhar, mesmo quando as músicas nos passam isso. Ali, em palco, ela é alguém que veio tocar as suas músicas, veio mostrar o seu trabalho.


Começou por “Stranger into Starman” e “Looking for nothing” do novo álbum “Smilers”, assim como “Freeway”. “31” deste álbum, que fala da crise dos 30 foi uma das melhores. “Red Wines” foi um dos momentos mais intimistas, apresentada só com uma guitarra acústica. Ainda bem que o concerto foi composto por uma maioria de novas canções, mas não faltaram as recordações da banda sonora de Magnolia, que a tornou conhecida. “Save Me” teve direito a uma versão mais descontraída e “Wise Up” marcou uma presença mais sumida.


Na plateia a faixa etária também era menos jovem, mas tinha uma onda muito pop e encantadora. Ouviram-se alguns comentários de que o primeiro concerto teria sido mais envolvente, mas talvez fosse o público que estivesse menos entusiasmado por já não ser a primeira vez. Antes do encore ouviram-se "Today's The Day", do álbum “Lost in Space”, de 2002, e "How Am I Different?”. O regresso ao palco deu-se com “One” e o adeus com “Deathly”.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)

Obras de Miguel Gomes em destaque na Viennale


Constituindo-se como um dos mais conceituados certames da Europa de língua alemã, a Viennale assenta numa selecção de filmes que honra as novidades em todos os géneros e estruturas e a produção que se distancia da estética convencional, assim como a que é politicamente relevante, e decorre até dia 29 deste mês.
O Festival Internacional de Cinema de Viena, o mais importante certame de cinema da Áustria, que, ao longo de 13 dias exibirá uma cuidadosa selecção de novos filmes oriundos de todo o mundo, dedica este ano um programa especial ao realizador português Miguel Gomes.
Ainda no rescaldo do sucesso de “Aquele Querido Mês de Agosto”, o destaque possibilita a projecção de todos os seus filmes exibidos em retrospectiva, desde a curta “Entretanto”, de 1999, num total de oito registos, dois deles longas-metragens, a que acresce “Rapace”, curta de João Nicolau em que Miguel Gomes participou ao nível da montagem.
O festival tem lugar no centro histórico de Viena e tem vindo a conquistar popularidade também entre o público jovem, que todos os anos representa uma parte bastante significativa das audiências presentes nas fabulosas salas de cinema onde o certame se desenvolve, como é o caso do Metro Kino, considerado o templo do cinema naquela cidade.
À excepção das longas-metragens, todos os registos de Miguel Gomes passarão exclusivamente pelo Metro kino. “A Cara que Mereces” é exibida hoje e repete no dia 26 de Outubro, respectivamente no Metro Kino (18h30) e no Künstlerhaus (11h), e “Aquele Querido Mês de Agosto” passou ontem no Metro Kino (21h) e é projectada amanhã no Gartenbaukino (13h).
Este ano, e dando realização a um sonho de há dez anos, a Viennale é promovida por um anúncio de “autor” considerado também como o regresso de um grande realizador – Jean Luc Godard, que cedeu a um velho pedido da Viennale e criou o spot promocional do certame, disperso pelos mais de 100 cinemas da Áustria. Com pouco mais de um minuto, a curta, de seu nome “Une Catastrophe”, é entrecortada por fragmentos de uma frase e “usa” o piano de Robert Schumann.De notar é igualmente o facto de “Aquele Querido Mês de Agosto” estar em cartaz há quase dois meses. O filme, que estreou a 21 de Agosto em Lisboa, Porto e Coimbra, abandona esta semana o Dolce Vita Coimbra e estreia em Braga hoje, no Lusomundo Braga Parque, mantendo-se no El Corte Inglés (Lisboa).

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)

A sublime bossa nova de Vinicius Cantuária

Vinicius Cantuária vem a Portugal. Cantor e compositor inserido no universo da bossa nova, trará certamente a beleza das músicas dotadas de sublime tristeza, sedução e inquietude, como por exemplo a música “Lua e Estrela”, que fez enorme sucesso no Brasil, gravada por Caetano Veloso. Ele também escreveu para gente como Gilberto Gil, Gal Costa, Simone, Chico Buarque, Fagner, Elba Ramalho e Fabio JR, entre outros.
Começou como percussionista, passando mais tarde para a composição e a guitarra. O ritmo manteve-se.
Em 1994, muda-se para Nova Iorque, o que acabou por lhe proporcionar a hipótese de colaborar com Arto Lindsay, que lhe abriu portas para trabalhar Ryuichi Sakamoto, Bill Frisell, Brad Mehldau, Nana Vasconcelos, Mark Ribot, Jenny Scheinman, Erik Friedlander, Brian Eno, Cesaria Evora, John Zorn, Melvin Gibbs, Sean Lennon, Paulo Braga e David Byrne, entre outros.
No entretanto foi compondo e gravando que foi conquistando adeptos pelo mundo. Uma das benesses de se ter sediado em NY foi a construção de um percurso de concertos cada vez mais sofisticados, normalmente concorridos pelos seus pares, que lhe reconhecem uma certa genialidade.
A primeira parte do concerto em Sintra está a cargo dos Couple Coffee que irão brindar a audiência com a interpretação de alguns temas do seu último álbum de homenagem à Bossa Nova. A agenda de concertos de Vinicius marca várias cidades em Portugal: 30 de Outubro - Sintra, Centro Cultural Olga Cadaval, 22:00 (convidado especial - Couple Coffee); 31 de Outubro - Faro, Teatro das Figuras, 21:30; 1 de Novembro - Guimarães, 22:00.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)

Prolongamento de Exposições na ZDB

As exposições de fotografia de Patrícia Almeida e André Cepeda em destaque na Galeria Zé dos Bois, denominadas “Portobello” e “Ontem”, respectivamente, foram prolongadas no seu tempo de contacto com o público.
Patrícia Almeida aborda o “lugar-marca” Algarve, do ponto de vista do marketing e do turismo, através da fotografia. Patrícia Almeida tem 38 anos, um percurso consistente e esta é a sua segunda exposição individual. Aqui é o Algarve como lugar para estar, não para habitar ou visitar, mas para experimentar, consumir durante umas semanas.
André Cepeda expõe no sentido do tempo que leva a tirar uma fotografia. Ele contraria o processo digital e imediato dos tempos que correm e escolhe criar imagens que levam tempo a fabricar. As fotografias apresentadas são tiradas com uma máquina de grande formato e mostram paisagens contemporâneas do nosso país.
Ambos os trabalhos podem ser vistos até ao dia 22 de Novembro, na Galeria Zé dos Bois.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Um processo de procura


Teatro do Vestido apresenta “Ilhas”
Residência e Acolhimento no Negócio

Sete anos após o seu primeiro trabalho apresentado na Galeria Zé dos Bois, o Teatro do Vestido voltou a colaborar com a ZDB, através de uma co-produção que envolve residência e acolhimento no NEGÓCIO. Entre 22 de Setembro e 14 de Outubro, o Teatro do Vestido esteve em processo de criação. Agora apresentam o seu trabalho até 25 de Outubro, sempre às 21h30. Com criação e interpretação de Gonçalo Alegria, Simon Frankel, Tânia Guerreiro e Joana Craveiro, responsável também pela direcção, “Ilhas” é a 10ª criação desta companhia.

Quem é o Teatro do Vestido? Fundada em 2001, é uma companhia de pesquisa e criação, constituída por um colectivo multidisciplinar, que colabora ininterruptamente há sete anos. Até agora desenvolveram e apresentaram 9 projectos, passando por Portugal, Glasgow e São Paulo. Os espectáculos que fizeram, por ordem de estreia, foram: “Carta-Oceano”, a partir de Blaise Cendras; “Nunca serei bom rapaz”, a partir das Cartas de Prisão de George Jackson; “Walden”, a partir de Henry David Thoreau; “Exaustos”, “3.Elvira3”, um espectáculo infantil, “Lugar Nenhum”; “Cinzento Grey”; “Skyscapes” e “Tua”. O Teatro do Vestido desenvolve uma dramaturgia própria e característica, que tem sofrido evoluções e desenvolvimentos ao longo destes 7 anos de actividade. Em 2006 iniciaram, em simultâneo, um projecto pedagógico, de nome Zonas, que tem contribuido para a reformulação constante de processos, temas e questões pertinentes dentro da própria companhia.
A equipa do Teatro do Vestido é permanente (Joana Craveiro, Gonçalo Alegria, Tânia Guerreiro) e, recentemente, viu ingressar nas suas fileiras dois novos membros (Rosinda Costa e Simon Frankel), e regressar como actriz um outro membro que já não participava nessa qualidade desde 2006 (Inês Rosado). O Teatro do Vestido colabora ainda com Miguel Seabra Lopes, na área da imagem e assistência ao processo de criação.
A essência deste projecto está exactamente nesse processo de colaboração. Apesar de terem uma direcção artística, que normalmente coincide com a direcção de cada projecto, a companhia tem desenvolvido processos de enorme colaboração e interdisciplinaridade. “Ilhas” é o décimo trabalho da companhia, uma dramaturgia original do Teatro do Vestido, de acordo com as características do trabalho desenvolvido pelo colectivo desde a sua fundação – a companhia trabalha exclusivamente textos originais, construídos com base em diversos pontos de partida.
“Ilhas” é um projecto de pesquisa e criação no qual se propõe investigar um tema que não é necessariamente geográfico, que é cultural, científico, literário. “Quando dizemos Ilhas dizemos entre outras coisas tudo aquilo que nos torna ímpares, únicos, isolados, sozinhos, juntos – falar de Ilhas é necessariamente falar de pontes, de arquipélagos, de formas de viajar de umas para as outras, e também de desencontros, de atrasos e de falhas de comparência. Cruzamos neste projecto referências, autores, ideias, a partir de um percurso que cada criador organizou em cinco capítulos, cujos títulos são já uma declaração de intenções dramatúrgicas - por exemplo: Afogamento; Nuclear; Apocalipse; Um Medo; Esquecimento, Morte e Escuridão; Êxodo; O Passado é todo ele Arquipélagos; Os Insectos; O Inverno; A Paixão.” – explica o Teatro do Vestido.
Em toda a sua construção procuram um aprofundamento do processo colaborativo e apostam num questionamento constante acerca do mundo e das coisas que os rodeiam, que existem no mesmo universo. Em “Ilhas” procuraram e encontraram determinadas ligações entre assuntos e personagens, que de alguma forma, provocam inquietações, que os fazem questionar e que os empurram para uma busca de uma relação, que querem que esteja presente em tudo o que fazem. “(…) perguntando-nos a cada momento qual a nossa relação com os materiais que propomos e qual o seu contributo para a redefinição de quem somos hoje, do que queremos hoje e, claro, do mundo que desejamos. Partindo do princípio de que a política existe em tudo, esta é a nossa forma de a fazermos. Com este teatro coisa que fazemos. E este processo de o fazer.” O resultado desta procura, deste processo criativo, estará em cena até 25 de Outubro.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.17.10.2008)

Abram-se os olhos e as almas ao cinema documental



O regresso do doclisboa – VI Edição

As portas estão abertas, as melhores salas de Lisboa já foram ocupadas e a agitação já se faz sentir. Já começou a VI edição do doclisboa e durante dez dias é difícil fazer outra coisa que não inclua ir ver um dos filmes programados. Até 26 de Outubro a Culturgest, o São Jorge, o cinema Londres e o Museu do Oriente estão de olhos postos no mundo e quem por lá passar também sairá com novas visões.
Em 2007, na sua quinta edição, o doclisboa apostou em renovar o interesse do público pelo documentário e conquistou mais público. Este ano o doclisboa regressa e tem como objectivos principais mostrar filmes que provavelmente não chegariam cá se não houvesse o doclisboa; permitir uma reflexão mais aprofundada sobre temas contemporâneos e de actualidade; dar a conhecer de forma mais sistemática a cinematografia de outros países e organizar debates que mobilizem o público em torno de filmes importantes e de temas transversais, presentes em várias obras. No fundo o doclisboa tem um lugar de inquestionável importância na cidade lisboeta, criando oportunidades de reflexão, de conhecimento, de encontro cultural e o seu objectivo é conquistar a cidade documental. O doclisboa apresenta este ano, seguindo a sua linha conceptual, um programa de teor muito político, mas inova em determinados aspectos que surgem numa incursão pela conquista de novos públicos. O Doclisboa 2008 tem secções novas como a "Heart Beat", que reúne documentários sobre música, alguns inéditos em Portugal, como "O mistério do samba", que o realizador Lula Buarque de Hollanda mostrará em Lisboa, e "Let´s get lost", de Bruce Webber e sobre o trompetista Chet Baker. Haverá ainda uma programação nova, intitulada "Novas famílias, novas identidades", uma série de curtas-metragens da Polónia, entre as quais do realizador Krzysztof Kieslowski, e um destaque especial para a cinematografia de Moçambique. A programação do Doc Lisboa divide-se por várias secções, além das competições nacional e internacional. A secção Riscos e Ensaios apresenta algumas antestreias nacionais, como é o caso de "Hunger", Câmara de Ouro em Cannes, ou do último filme de Fernando Lopes, "O meu amigo Mike ao trabalho".
Diários Filmados II complementa o programa da edição anterior, com trabalhos sobre importantes nomes do documentarismo e da fotografia, como Joris Ivens, Raymond Depardon ou Robert Frank. Curtas Polacas e uma pequena mostra de documentários rodados recentemente em Moçambique complementam a programação. Salienta-se a retrospectiva de carreira do homenageado desta edição, Frederick Wiseman, documentarista norte-americano de 78 anos, que também marcará presença em Lisboa. Uma ocasião para ver ou rever a obra de um dos homens que, nos últimos quarenta anos, tem abordado grande parte das instituições norte-americanas, em filmes com cada vez maior actualidade.
Nan Goldin é outra das “estrelas” desta edição. Faz parte do júri internacional e traz até nós um dos mais originais olhares de fotógrafo dos dias de hoje, além de um filme sobre o seu percurso. O realizador Laurent Cantet e o escritor (e actor no filme) François Bégaudeau apresentarão em antestreia o vencedor da Palma de Ouro de Cannes deste ano, "A turma".
No total, serão exibidos cerca de 175 documentários, tornando o festival mais extenso. Destacam-se temas mais picantes – o sexo e o swing – e uma secção muito política – ‘Maratona Eleições’ – a três semanas das presidenciais dos EUA. A China é o país convidado. Sérgio Tréfaut avança: "Temos uma programação chinesa que interroga a China com um olhar muito especial e que não é um programa institucional, antes pelo contrário. Se alguém quiser compreender o que é a resistência na China tem isso nos nossos filmes", destacou o programador. O festival vai exibir 13 documentários independentes que seguramente “nunca foram exibidos na televisão chinesa”.
A abertura oficial do doclisboa deu-se ontem, com o nome sonante Avi Mograbi, cineasta israelita, que esteve presente com o filme “Z 32”, que está fora da competição. Sérgio Tréfaut tem razão quando o afirma como um filme inovador e perturbador. Versa sobre os crimes de Estado de Israel, relatados por um ex-soldado num registo muito íntimo, sobre os depoimentos do militar, partilhados com a namorada, ambos de rosto tapado. “Z 32” impressionou a crítica e o público no Festival de Cinema de Veneza e foi escolhido para a abertura oficial, com o acrescento de que no final o cineasta debateu com o público após exibição do filme. O filme de abertura repete no dia 18, no cinema Londres, às 22h30.

O filme de encerramento será "Maradona by Kusturica", que passa no dia 25, na Culturgest.
Este ano, a direcção do DocLisboa recebeu cerca de 1300 documentários, entre curtas e longas-metragens, dos quais escolheu 175. Foram seleccionados 14 para a competição internacional de longas-metragens, nove longas-metragens portuguesas e três curtas-metragens nacionais. Augusto Seabra, um dos comissários do DocLisboa, descreveu esta sexta edição como "a edição big bang", repleta de ousadias, de filmes-limites, de ficções do real. Com um orçamento de 900 mil euros, dos quais 110 mil euros são de apoio financeiro do ICA, 67 mil euros da câmara de Lisboa e da EGEAC. Em 2007, o festival contabilizou cerca de 33 mil espectadores, mas para este não há previsões. Certamente ultapassará os números anteriores, mas acima de tudo, ultrapassará as nossas expectativas, pela qualidade a que nos habitua, mas também por nos ter habituado a surpreender-nos ano após ano. O doclisboa desperta interesse para o documentário, fonte de enriquecimento, e tem um lugar único.
O Doc Lisboa passará nas salas da Culturgest, nos cinemas Londres e São Jorge e, este ano, numa primeira parceria deste género, também no Museu do Oriente. No final, a associação promete uns Estados Gerais do Documentário, a realizar de 27 a 29 deste mês, no Cinema Londres, porque a Apordoc, responsável pelo festival, comemora 10 anos, e porque é importante reflectir.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.17.10.2008)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A capacidade de mudar depende de si


Naturalismo Pop
Mona Lisa Show de Pedro Gil

Atenção. O Mona Lisa Show vai começar. Luzes. 7 personagens, 7 histórias para contar, 7 pessoas em palco. Eles falam de si próprios, abrem-se ao público como se fosse um reality show. Como se de uma montra se tratasse. No fundo falam de nós ou de pessoas que conhecemos, em diálogos cruzados, que por vezes se tocam, dando respostas uns aos outros, criando dúvidas. Diálogos murmurados que nem sempre estão em foco. A certa altura estão todos a falar ao mesmo tempo. O concerto já começou.

Pedro Gil, mentor da ideia conceptual e encenador da peça teve a trabalhar neste espectáculo dois anos. Depois de “Homem-Legenda”, apresenta uma nova criação. A peça insere-se numa linha semelhante, a de espectáculo provocante. Os pensamentos de cada um ganham voz ou os pensamentos dos outros fazem-nos questionar os nossos próprios pensamentos. Os desejos mais íntimos podem estar em palco. Perguntas, muitas perguntas e nenhuma resposta, essa pode estar em cada um de nós. A temática versa sobre o amor, a família, a realização profissional e pessoal, o tempo e a qualidade de vida. Na prática são temas que reflectem os dias que vivemos na sociedade. Eles são de Lisboa e pertencem a este espaço.
Pedro Gil começou por criar um esboço das histórias que queria contar. Juntou a equipa de actores e partiram rumo a Montemor-o-Novo, onde fizeram uma residência artística, no Espaço do Tempo. As personagens foram ganhando forma e foram de algum modo reinventadas. O encenador considera que as personagens estão todas numa espécie de abismo. Todas já têm algumas conquistas na sua vida, têm um lugar seguro onde vivem. Mas, por isso mesmo podem mudar. Porque não? Apresento-os:


- Vai ser pai, trabalha no ramo imobiliário e corresponde-se na Internet com a Soraia, que através de uma fotografia falsa vai entrando nos pensamentos dele. Ricardo Gageiro dá voz a este homem.
- Mãe, esposa e publicitária a tempo inteiro, que se culpabiliza por ser sempre a última a ir buscar o filho ao infantário. Tem aulas de salsa, o único “luxo” a que se permite numa vida agitada. Ela é uma mulher cansada, que há meses que tenta acabar o livro que está a ler, nunca saindo da mesma página. Quer despedir-se, deixar de se esquecer das amigas e ter tempo. Raquel Castro numa óptima estreia.
- Casado há 26 anos. Dois filhos adultos. A filha descobriu que ele tem uma amante praticamente da idade dela. Ela está em pânico com o facto da mãe poder descobrir e confronta o pai com o facto de ter descoberto. Isto nunca lhe tinha acontecido. Será amor? Ele é António Fonseca.
- Namora há quatro meses. Mas o Nuno é que era. Tinham uma relação de perfeito encaixe. O Filipe quer ir viver com ela. E as luzes vermelhas acendem-se na sua cabeça: pânico, perigo, pensa rápido numa resposta. Ele é só “boa cama” na visão dela. Ele quer ser o pai dos seus filhos. Ela diz-lhe que quer uma relação aberta e que com ele nunca vai resultar. Acaba com ele. Quer um homem que a deixe ser livre sexualmente. Mónica Garnel tem um desempenho brilhante.
- Ele quer ser o filho ideal, visita pelo menos uma vez por mês a sua mãe. É homossexual e quer-lhe dar um filho. O seu pai nunca aceitou a sua sexualidade. Ele adora praia, o verão e as suas paixões. Romeu Costa é esse filho.
- É artista, mulher, bonita. Nasceu na Argentina, mas veio estudar para Portugal. Deixa a vida correr. Questiona-se. Um amigo dela, também artista, pergunta-lhe quando vai ela desistir de criar, quando vai ela ter a coragem para ir procurar a felicidade noutro lado. Ainhoa Vidal, a bailarina descobriu mais um talento.
- O pai tem cancro. Ele tem tantas perguntas para lhe fazer, o pai não tem nenhumas. O pai não aplaude as suas escolhas profissionais. O filho convida o pai para uma viagem. Não percebe como é que os dois nunca se embebedaram. Por David Almeida.



A encenação de Pedro Gil funciona muito na base do trabalho de actor. Tudo acontece entre a passadeira, os projectores e as personagens. Em termos temáticos não nos traz nada de novo, mas dá-nos flashes, fragmentos que podem fazer a diferença. Clichés e frases que toda a gente já disse ou já ouviu: “Quero acabar contigo. Não é sobre ti, sou eu. Preciso de espaço. A comida é quase tão boa como a da mamã. Não desistas de mim.” É de um naturalismo pop soberbo.
Até porque no meio de temas aparentemente banais, falam também de preconceitos, de problemas sociais e culturais e do poder dos ícones, da fama. Ao longo do espectáculo vão-se sentindo cortes emocionais, que por vezes são conseguidos pela música ou pela própria interrupção nos diálogos.
O que quer essencialmente é contar as histórias destas personagens e a forma como se relacionam, na actualidade: “Não procuro que as pessoas se identifiquem, apenas que aceitem, que sirva como uma janela que pode dar ou não num processo de reflexão.”.
A peça vem-nos relembrar que há possibilidade de fazer coisas que nunca tivemos coragem de fazer, escolhas, ter direito a, poder escolher. Saber dizer quero mais, quero diferente. Escolhi isto. Ser só eu, sem medos, sem desconfianças. Acabar a dizer: “Esta sou eu, a minha respiração” e parar de andar “Para trás e para a frente, como se fosse uma máquina: o que tenho de fazer, o que ficou por fazer”.
Pode mudar a sua vida? Não tanto, mas pode mudar algumas coisas da sua vida. Será um momento de libertação, desde que esteja disponível. A questão que o “Mona Lisa Show” deixa é: do que é que se vai lembrar amanhã?

ANA MARIA DUARTE

© imagens de José Franscisco Azevedo
Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.10.10.2008)



sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Gregory Maqoma, animal de palco


Gregory Maqoma nasceu para isto, para nos transmitir informação. “In stage, I lose myself and I get the energy from the audience”. As palavras ditas por Gregory Maqoma, em conversa posterior ao espectáculo, só vêm confirmar a sensação de transmissão de energia para o palco, enquanto o seu corpo se movimentava de forma tão intensa. Um espectáculo de cortar a respiração, de entrega total. Ele é um animal de palco. No passado dia 23 de Setembro, na Culturgest, “Beautiful Me” revelou-se uma experiência transcendental.

“Beautiful Me” foi o trabalho trazido pelo coreógrafo ao palco da Culturgest, que partiu da fusão de trabalhos e dádivas de três importantes coreógrafos - Akram Khan, Faustin Linyekula e Vincent Mantsoe -, mas que acima de tudo é sempre único, sempre diferente. Este é um trabalho em que experimenta sempre coisas e sentimentos diferentes, até porque o processo de criação é constante, provocando sempre mudanças ao nível do que vive em palco. Nesta peça Maqoma desafia a noção de dança, na procura de uma definição ou redefinição da sua própria linguagem coreográfica.
A abertura do espectáculo dá-se com uma conversa com o pai: “Papá, eu sou um pavão, tenho cores lindas (…)”, começando uma espécie de ritual, que tem em si não só uma linguagem que funciona como extensão do trabalho dos três coreógrafos que estão na base deste espectáculo, mas que reúne e respira histórias, momentos em que se ultrapassa e em que nos transmite tudo aquilo que encontrou para si. Ele transforma-se em vários animais, trespassa vários universos de energia, confunde-se com a luz e com o escuro do palco e os seus braços tocam os sons que saiem dos instrumentos que ecoam ao fundo do palco, trazendo-nos cores nunca vistas. Ele ali foi um pavão feito de notas musicais.
O processo de criação deste espectáculo foi global, e essa noção conceptual de um processo com dois lados, em que a forma é tipicamente win-win, sente-se em todo e qualquer momento do espectáculo. Mais tarde, em conversa, explica como foi criada esta conjuntura musical. “Não estava nada escrito.” Acaba por se definir como “the school”, em termos de aprendizagem para os músicos, porque foi a sua inspiração. Ele escolheu os instrumentos e tentou beber a complexidade das melodias. Ele deu-lhes movimentos, eles deram-lhe sons e a nós deram-nos verdadeiramente tudo o que tinham para dar. As respirações lidas no seu corpo misturavam-se harmoniosamente com as vocalizações do percussionista e do violinista. A cítara electrónica, instrumento escolhido por Akram, deu-lhe o toque de génio.
Entendi este espectáculo como um solo acompanhado por uma performance musical. Gregory Maqoma trabalhou com quatro músicos de origem africana (Poorvi Bhana, Bongani Kunene, Gicen Mphago e Isaac Molelekoa) que se distinguem pelos sons especificamente africanos que tiram dos seus instrumentos e pela sua dedicação ao aprofundamento deste género musical.
Aqui a música teve um papel fundamental, tanto no desenvolvimento da coreografia, como na experimentação por parte do público.
Gregory bebe muito nas experiências culturais da sociedade, daí também a profundidade do seu trabalho. Nesta peça viaja em termos de movimentos numa composição com contribuições dos três coreógrafos, em que mistura linguagens e vai-nos contando várias conversas, como a que teve com Faustin: “Temos falado muito sobre espaço e eu sei que o espaço é importante para ti. Acho que devia, antes de mais, dizer-te em que ponto me encontro. Falámos em apagar nomes e apagar a história.(…)”. Gregory enquadra nomes históricos e fala com o público sobre as suas origens, as histórias exóticas que tem de vender para sobreviver. Ele é da Repúblicas Democrática da África do Sul.
Integra também uma conversa de uma beleza incrível que tivera com Akram e Vincent. Aqui fala do regresso ao 1, para se encontrar a si mesmo; fala das dificuldades, da posse, da procura. A última conversa que Gregory conta é a da Letra R: “Quando era jovem, acho que tinha 9 ou 10 anos, o meu pai costumava fazer-me escrever a letra R cem vezes, e eu tinha de lha gritar cem vezes. Nunca consegui pronunciar o meu próprio nome. Gregory.” Ele é um animal de palco verdadeiramente e supera-se a si próprio.
O seu corpo torna-se assim um retrato em movimento, reinterpretando emoções e histórias, e traduzindo criativamente, a partir da tradição e da linguagem, elementos que lhe eram pouco familiares. “There’s no end…” porque cada ciclo que termina, permite o recomeço. É tudo contínuo, começa e acaba onde recomeça. O palco é como uma plataforma transcendental. Respira, recomeça.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.03.10.2008)

“Entre o Dia e a Noite”, um espaço de memórias individuais



Um diálogo emotivo sobre liberdades

“Entre o Dia e a Noite” está inserido num ciclo de acolhimento a novos criadores. Try Better. Fail Better ’08 é da responsabilidade do Teatro Garagem e serve de espaço de experimentação, de lugar para novidades criativas. Esta é a primeira encenação profissional de Adriana Aboim e conta uma história de amor, de liberdade, de tensão. Acima de tudo este é um diálogo a quatro vozes, assumido como uma co-criação, tendo em conta o processo criativo. Com Pedro Carmo, Adriana, João Aboim e Carolina Matos, estará no Teatro Taborda até 5 de Outubro.

Na base da criação de Adriana Aboim estava uma ideia muito definida: trabalhar esta história a quatro vozes, criando um diálogo coerente entre as palavras de um homem e de uma mulher, e as sonoridades de um violoncelo e de um piano. Tudo isto numa abordagem realista criada num espaço intimista, onde fosse possível criar uma grande proximidade entre o público e os intérpretes.

Adriana adoptou um processo criativo de grande cumplicidade com a equipa, em que a peça foi sendo construída de acordo com aquilo que todos iam dando ao longo dos ensaios. A verdade é que funcionou. “Entre o Dia e Noite” é mesmo um diálogo a quatro vozes, principalmente porque os músicos conseguem ser mais do que isso, conseguem ser também eles actores. Porque os seus olhares se cruzam em momentos cruciais de diálogo que acontecem entre Adriana Aboim e Pedro Carmo, porque a respiração de Carolina ao tocar violoncelo se mistura com a tensão de um toque entre eles, mesmo que esse não aconteça, mesmo que não seja propositado.

A história em si mesma é tensa. A noite de passagem de ano, aquela entre a noite de ano velho e o dia de ano novo. Rosa odeia essa data pelas memórias da primeira vez que a mãe a deixou, no sentido de a proteger dada a sua incursão, sem regresso, na luta pela liberdade. Ao longo da história vamos percebendo determinado background histórico: a envolvência da Rússia, do vermelho da revolução que nos é transmitido através de frases e contextos da história de Rosa. A sua mãe lutava pela liberdade. Jorge também era um revolucionário. Há uma matrioska em cima da mesa do quarto que nos envolve e um chapéu russo que, a certa altura, é usado por Rosa. O espaço é de facto intimista. O cenário é simples e tem ar de quarto onde se trocaram beijos e reflexões sobre tudo e mais alguma coisa.

Os dois encontraram-se, viveram um amor impossível, pelo menos assim o entendem, separaram-se e, 15 anos depois, Jorge volta e encontra Rosa no quarto onde tanto tempo antes tinham vivido uma relação amorosa repleta de desequilíbrios que continuam presentes.

A passagem de ano marca decisões, um novo recomeço. Ambos o desejam intimamente, naquele tempo sem tempo onde se encontram num espaço onde parece apenas existir tempo para os dois. Jorge viveu, viajou, lutou, Rosa sobreviveu, casou e teve uma filha. Nunca mais se viram desde então. Tomaram decisões, todas as personagens o fizeram, incluindo a mãe de Rosa, ao deixá-la. Rosa e Jorge acusam-se, culpam-se, amam-se. De forma incontrolada começam a aproximar-se fisicamente. A tensão é crescente, entre a música tocada pelos fantásticos intérpretes João Aboim e Carolina Matos e as palavras soltas sussurradas e gritadas de Pedro e Adriana, respectivamente, sentimos a nossa respiração mais rápida, mais angustiada.

Esta peça fala-nos não só de uma história de amor sofrido, de duas pessoas que se separaram e que não conseguem ultrapassar isso, reflectido na força que Adriana Aboim (Rosa) passa pela sua voz trémula e pela forma como se deixa levar pelos pequenos toques, pela forma como lhe diz: “Estás mais gordo…”, e que Pedro Carmo (Jorge) passa através da forma como se movimenta em palco, como abre a janela do quarto, que dá para a varanda da Sala de Ensaio e olha as luzes da cidade, falando da saudade do mar, mas implicitamente da saudade de Rosa; esta peça fala-nos também das reflexões individuais, do poder do indivíduo. Mostra-nos que, apesar de toda a envolvência, o indivíduo está entregue a si próprio, que as escolhas (neste caso de Rosa e Jorge, quando Jorge decidiu partir e Rosa ficar, mesmo que Rosa considere que foi algo decidido por ele e ele passe maior parte do tempo a convencê-la, ou a convencer-se, de que foi algo decidido mutuamente) definem os caminhos de cada um. As decisões são momentos em que nos questionamos e em que percorremos os limites das nossas liberdades. Aqui fala-se de liberdade política, de decisão, de liberdade humana, de relacionamento, de liberdade de escolha. A vulnerabilidade das personagens vem daí, desse universo. Em último plano, eles são os únicos responsáveis pelas suas decisões. A liberdade procurada nas revoluções, aquela da história em background conceptual, é aquela que fica na memória social colectiva, mas são as liberdades diárias aquelas que são mais emotivas e que ficam na memória individual. É um jogo afectivo que está em palco. A intensidade e tensão reflectidas no trabalho passam também pela forma como foi desenvolvido, de criação conjunta, da forma emocional como se sente que trabalharam.

Além da revolução de memórias afectivas trazida pela peça, eles relacionam-se novamente com os mesmos objectos com que já se haviam relacionado. Toda esta peça é um regresso a um lugar onde já estiveram, mas que não é igual, mesmo se se continuam a amar, e que falem não muito objectivamente desse sentimento, eles, enquanto indivíduos, estão diferentes. A mãe de Rosa bate à porta do quarto. Nunca a vemos. Só a ouvimos, através da sua voz seca a chamar Rosa e através da voz de Rosa a falar-nos dela. É ela própria uma voz presente, a quinta voz. E respiramos fundo por ter terminado a angústia daquele momento, mas entre o cheiro a cigarros que fica pelo fumo partilhado e a sonata de Shostakovich que não nos sai da cabeça, reflectimos sobre as nossas liberdades e questionamo-nos a nós próprios. 

 




 Um diálogo com Adriana Aboim  

Esta é a tua primeira encenação profissional. Como está a correr?

Adriana Aboim: Está a ser um trabalho muito intenso e interessante. Já tinha feito uma encenação no mestrado que fiz na Escola Superior de Teatro e Cinema e essa foi mesmo a minha primeira experiência de encenação, não ao nível profissional, mas a nível de Mestrado.

Neste novo trabalho, como fiz o texto e participo como actriz, não foi propriamente uma encenação minha no sentido real de encenação, porque como estava em palco, não conseguia estar totalmente fora. Acabou por funcionar de outra forma. Fiz mais direcção artística, as escolhas, as decisões passaram por mim, mas foi sobretudo um trabalho de co-criação com os outros intérpretes e com a Ana Lacerda que foi a directora de actores e no fundo a pessoa que esteve de fora a gerir. Por isto é que eu não chamaria neste caso uma encenação, mas uma co-criação com direcção minha. No fundo eu tinha uma concepção que lhes passei e a partir dessa ideia trabalhámos até chegar a um resultado. Foi uma experiência muito interessante e que gostei muito, sobretudo pelo trabalho desenvolvido também com os músicos, que vêm de uma área artística completamente diferente e que acho que se encaixaram muito bem no trabalho. Eles próprios fizeram exercícios de actores, muito ao nível das emoções, para depois os transportar para a música.

Então a música foi também surgindo ao longo do processo de criação?

AA: Há uma sonata de Shostakovich, para violoncelo e piano, que escolhemos no processo de ensaios e o resto das músicas são improvisações deles, que foram surgindo durante o processo criativo.

Porquê a decisão de encenar, de representar e de escrever o texto? O que surgiu primeiro?

AA: O que surgiu primeiro foi o texto. Eu comecei no teatro como actriz, mas sempre me interessei muito pela área da dramaturgia, da encenação. Sempre gostei do teatro no seu todo e nem sei bem de onde é que veio esta vontade de fazer tudo. Talvez fosse uma necessidade que eu tivesse e que começou exactamente pelo texto. Começou numa aula de um curso de escrita criativa que eu fiz na Faculdade de Letras, em que nos foi pedido para termos a ideia de uma história e para esboçarmos algumas páginas de uma peça, como exercício. Depois do curso acabado, decidi pegar nessa ideia e experimentar escrever uma peça e ver o que ia dar. Quando acabei o primeiro esboço tive imensa vontade de o pôr em prática, pô-lo em teatro, transformá-lo. Falei com pessoas minhas conhecidas da área, o Pedro, os músicos, a Ana Lacerda e começámos a pô-lo de pé.

Foste tu que propuseste apresentar aqui no Teatro Taborda?

AA: Sim, falei-lhes nisso e eles tiveram grande abertura. Já tinha apresentado a peça de final de Mestrado aqui, em Junho deste ano, e este acolhimento que eles fazem é óptimo para pessoas que estão a começar.

Como foi feita a selecção das pessoas que estão a trabalhar contigo?

AA: O Pedro é um actor cujo trabalho conheço, também porque andou comigo na Escola Superior, assim como a Ana Lacerda. O pianista é meu irmão e quando surgiu a ideia de juntar dois músicos, criando um diálogo paralelo com a acção, inevitavelmente tinha um músico ao meu lado, tendo logo surgido a ideia de trabalhar com ele. A Carolina é uma rapariga que nos foi apresentada e que aderiu logo à ideia e começou a colaborar connosco.

Como tem sido a reacção do público?

AA: Acho que está a ser positiva, as pessoas têm gostado muito.

Quais eram as tuas expectativas para este projecto?

AA: Eu queria sobretudo que fosse qualquer coisa que funcionasse como um desafio para mim e que se concretizasse em algo que fizesse sentido e que chegasse às pessoas que nos vêem. Que de alguma maneira lhes tocasse, que lhes dissesse qualquer coisa. Também não gosto de criar grandes expectativas, gosto de ir vendo a coisa à medida que vamos construindo.

Até porque neste caso, como co-criação, foi surgindo?

AA: É verdade, eu tinha uma ideia muito forte, mas no fundo foi uma co-criação no sentido em que eu não estive de fora, ou seja, nem todas as escolhas foram minhas. Eu tinha uma ideia muito forte do que queria e tentei passá-la às pessoas que trabalharam comigo.

E que ideia era essa?

AA: A ideia era trabalhar esta história, que é sobretudo uma história de amor, um bocado conturbada, com dois actores e dois músicos num diálogo paralelo, ou seja, que a música não surgisse como um acompanhamento musical da peça, mas que esses dois músicos fossem também dois intérpretes, no fundo como dois personagens da peça. Por isso são também um homem e uma mulher, são dois instrumentos diferentes, como mais duas vozes. No fundo queria criar uma peça a 4 vozes, em que há uma voz feminina, uma voz masculina e dois instrumentos, dois intérpretes que falam com música e dois intérpretes que falam com palavras, criando-se assim um diálogo entre os quatro. Acho que isso foi o nosso maior desafio: como conjugar música, palavra, como passar isso, como criar contrastes, ou como levar a música de encontro às emoções. Queríamos sempre que fosse caminhando lado a lado. Isso era a minha principal ideia. Depois queria também que fosse feito num espaço intimista. A acção passa-se toda num quarto e eu queria que esse quarto fosse muito próximo do público. O público entra pela porta que depois vai ser a porta do quarto, por onde entram as personagens, dando a ideia de que o público está dentro desse quarto, tão próximo dos actores quanto isso. Também tinha outra ideia, que a peça bebesse muito do trabalho emocional entre os intérpretes. A partir destes pressupostos e com a ajuda de todos os participantes fomos criando.

 

A tua abordagem ao teatro, pelo menos nesta peça, é uma abordagem naturalista. Escolheste-a pela história em si ou sentes que é a tua forma de trabalhar o teatro?

AA: Eu ainda estou a descobrir qual a minha abordagem, o meu caminho, mas, por exemplo, um dos exercícios que fiz no mestrado, jogava muito com uma linguagem realista de texto, mas também com uma linguagem simbólica, de sinais. Aqui, acho que é a música que dá esse contraste, que corta esse realismo ou naturalismo, que vem dar o lado simbólico, abstracto.

Tens alguma ideia do que vais fazer a seguir?

AA: Neste momento ainda não sei, mas talvez vá dirigir o grupo de teatro da Universidade Nova, que foi uma faculdade onde já andei há muito tempo. Surgiu este convite e acho que vou agarrá-lo, porque me parece bastante interessante trabalhar ao longo de um ano com pessoas que ainda não têm muita experiência teatral, mas que são pessoas interessadas à partida, porque há um grande amor àquilo que se faz. São estudantes que à noite vão fazer teatro porque querem. Esse lado fascina-me. Tenho esse projecto, tenho de escrever a minha tese de mestrado, que pode partir de um trabalho prático, ou deste ou do trabalho da Nova, e vou continuar a dar aulas de expressão dramática.

ANA MARIA DUARTE

Fotografias de João Penedo/ João Abel Aboim  

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed. 03.10.2008)