sexta-feira, 17 de julho de 2009

Projecto Estúdios no Maria Matos

O salto de pára-quedas
3 Espectáculos em 3 semanas




“Sempre”, “Pedro Procura Inês” e “Bobby Sands vai morrer Thatcher assassina” são três espectáculos que surgem do projecto Estúdios, uma parceria entre o Teatro Maria Matos e o Mundo Perfeito. 3 espectáculos em 3 semanas. Cada semana 1 espectáculo. 4 dias de criação e 3 de apresentação. Em cada semana tudo pode acontecer, tudo pode mudar. Tiago Rodrigues, um dos criadores participantes neste projecto, deu-nos a sua visão do processo. Tudo o que foi feito até agora pode não ser apresentado. Qualquer semelhança entre os nomes dos espectáculos, as palavras de Tiago Rodrigues (e mesmo as minhas) e a realidade pode ser pura coincidência.

A ideia era esta: juntar artistas portugueses e estrangeiros e fomentar a experiência, o risco. Roubando a imagem a Tiago Rodrigues, é como se estivessem todos a saltar de pára-quedas e cada um dobrasse o pára-quedas do outro. À partida surgem espectáculos de grande risco, onde a experimentação é a palavra de ordem. Mas a ideia mais forte é a de confiança.
O processo de criação responde a um desafio, que foi o de colocar um grupo de artistas (Alex Cassal, Cláudia Gaiolas, Felipe Rocha, Michel Blois, Paula Diogo, Tiago Rodrigues e Thiare Maia), que não se conhece, a criar em conjunto. A ideia de espectáculo é desmistificada neste projecto, porque tudo o que um espectáculo envolve, como os tempos de criação e mesmo toda a estrutura, até de comunicação e técnica, é posto em causa. “Esta discussão de haver um espaço de experimentação, que é também entre o Maria Matos e o Mundo Perfeito, tem tido um acompanhamento muito convicto de que isto é um processo de trabalho que pode oferecer coisas que ainda não foram oferecidas em Lisboa, dentro das artes performativas. A ideia do projecto é interessante, mas a convicção de toda a estrutura é ainda mais interessante (…)”.
No processo, os artistas disponibilizam todas as ferramentas que têm e estão disponíveis para o outro, para aquilo que cada um individualmente propõe. Nas palavras de Tiago Rodrigues: “ (…) criar um espectáculo numa semana implica, por um lado, um esforço tremendo de persuasão dos outros, por outro, estar completamente disponível para os caminhos propostos (…). É mais do que partilhar experiências, é “usar essa experiência em conjunto”. “Não há outra hipótese senão confiar, porque eu vou saltar de um avião e é bom que aquele pára-quedas esteja bem dobrado. Individualmente eu faço uma proposta, mas a minha proposta vai estar protegida pelo empenho dos outros. Essa lógica de colaboração tem sido altamente eficaz, porque é a única forma de saber que começamos a trabalhar numa segunda-feira e que estreamos em quatro dias.”


O processo é este: cada um traz o material que quiser, propõe e experimenta-se, mas há uma decisão colectiva. Usa-se aquilo que é o melhor de cada um ou aquilo que cada um consegue impor aos outros a partir da sua capacidade de persuasão. “Trabalhar em democracia implica ser altamente individualista, ou seja, estamos a trabalhar colectivamente, por isso o meu objectivo, às vezes, é convencer os outros de que a minha ideia é a melhor.”
Em “Sempre”, sentia-se um experimentalismo seguro, como se tivessem a experimentar coisas que efectivamente sabiam resultar, sentia-se uma certa “rede” na criação, uma procura de respostas óbvias tendo em conta o pouco tempo que tinham tido para criar o espectáculo. Tiago Rodrigues diz que no segundo espectáculo (em cena até amanhã) existe uma maior ousadia, porque já perceberam que são capazes. “No primeiro, nós não sabíamos se era possível. Agora sabemos que sim, queremos fazer um espectáculo mais perigoso, e ir mais longe nesse formato. A possibilidade de acidente é muito maior, vamos mais desprevenidos e a desejar esse estado de alerta.”
Por outro lado, em “Sempre” existia uma tentativa de criar uma linha de compreensão, passar uma história, dar um sentido, que se pretende manter, mas não de forma limitativa, ou seja, que permitindo aos espectadores criar o seu próprio sentido.
No dia em que entrevistei Tiago Rodrigues, dois dias antes da estreia do segundo espectáculo, a ideia subjacente era esta: “(…) Se pudesse dizer sobre o que é que é este espectáculo diria que é sobre a tentativa de construir um espectáculo numa semana, de comunicar, e da comunicação ser falha e ser rica também porque transforma (…). É um espectáculo construído à volta da ideia de cópias de originais, de adulteração, embora isto seja uma interpretação minha, muito pessoal.”
Tendo em conta que não há um limite para ter o processo fechado, a não ser que 2 horas antes do espectáculo tem de existir uma construção preparada para mostrar, tudo o que foi dito ou feito até agora pode não ter nada a ver com o produto final desta semana. E para a próxima: quem sabe? Só sabemos que estreiam o último espectáculo no dia 23 e até dia 25 tudo pode ser posto em causa.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (17-07-2009)

Créditos das Imagens: José Frade

O universo das crianças explorado nas Curtas

Vila do Conde recebe 15 mil espectadores
Festival de Curtas de Vila do Conde


Vila do Conde muda mesmo durante uma semana. As pessoas que por ali passam são outras. Este ano, no recém-estreado Teatro Municipal de Vila do Conde, estiveram no total 15 mil espectadores. Realizadores, actores e outros que tais, andam por ali, nos mesmos restaurantes, nos mesmos espaços, todos com o intuito de ver curtas, de saber o que se tem feito por cá e pelo mundo.

A programação da 17ª edição do Curtas deste ano era bastante heterogénea, e para além das sessões de cinema, havia ainda as oficinas, exposições e coisas para os mais novos. Na primeira noite do fim-de-semana estava programado um filme-concerto com Vinicius de Cantuária e Naná Vasconcelos. Vinicius não pode vir e veio antes Norberto Lobo, que já andava por lá desde o inicio do festival. Num primeiro momento musicaram o filme “Manhatta”, de 1929, onde se destacou a percussão, mas onde tanto o diálogo entre os dois, como o diálogo com o filme não funcionaram tão bem como no segundo momento, em que conversaram com as imagens de “Ny Ny”, de 1957, de Francis Thompson. Aqui, Norberto recorreu à guitarra eléctrica e foi possível viajar de novo a New York e entrar num mundo de imagens moldadas por sons.
No dia seguinte ainda passavam filmes a competição. À noite anunciavam os premiados. E logo a seguir puderam-se ver duas sessões de filmes que já tinham vencido. E assim foi possível ver a maioria dos filmes premiados.
Ao nível internacional, o grande prémio “Cidade de Vila do Conde” foi para “A História da Aviação”, um filme franco-húngaro, realizado por Balint Kenyeres. Uma família faz um picnic. São um grupo de pessoas de classe média-alta. A mãe não encontra a filha, que anda pelas montanhas a ver um voo até ao mar. É uma história situada na Normandia no início do século XX.
O prémio animação foi entregue a “Dust Kid” (Coreia do Sul), um filme de Jung Yumi. Fala de uma rapariga que encontra rapazes de pó, mas na verdade acho que Yumi nos queria contar da aceitação da sua criança interior, que por muito que ele a tentasse apagar voltou sempre. Um filme de uma simplicidade tocante, com movimentos delineados a preto e branco.
O prémio de melhor curta-metragem europeia foi para “Renovare” (Alemanha/Roménia), de Paul Negoescu, que nos dá 3 olhares sobre um mesmo momento, através de três personagens, e o prémio do Público foi para a animação francesa “Logorama”, de François Alaux, Hervé de Crécy e Ludovic Houplain, onde temos um mundo de marcas levado ao absurdo. A ironia do consumismo e do marketing levada ao extremo, através de um tumulto na cidade de L.A.
Na categoria dos vídeos musicais venceu “The BPA – Toe Jam” (Reino Unido) de Keith Schofield e na competição Take One!, o filme “Eu adoro este som!” (Portugal), de Zulmira Gamito, Filipe Fernandes e Rui Matos, que também explora o musical, mas o das crianças, fazendo-nos reflectir e rir sobre esta ideia do que sentem os miúdos através da música.
Uma das conclusões que surgiram ao sair de Vila do Conde foi o facto de muitos filmes explorarem o universo das crianças. Era o caso deste filme, mas também do vencedor “A História da Aviação” e de “Echo” que contava a história de dois rapazes que mataram uma rapariga, em que se explora o confronto com a realidade, aquilo que está por trás do acto, a influência dos pais no comportamento humano, como em “The Ground Beneath”, de René Hernandez, que venceu na categoria “Curtinhas”, que consiste numa viagem emocional de um jovem adolescente, Kaden, que vive uma vida de medo e ameaças, focado na figura do seu pai, mas que nos fala, com um olhar um pouco moralista, da oportunidade e da capacidade de mudança e auto-descoberta (pormenor estranho: um filme que explora a violência emocional estar enquadrado na secção “Curtinhas”, dedicada a um segmento infanto-juvenil).
Destaques ainda para “Madam Butterfly” (Taiwan), de Tsai Ming Liang, que ganhou o prémio ficção, e “Entrevista con la Tierra” (México), que venceu o prémio documentário.
Em competição nacional o vencedor foi “Canção de Amor e Saúde” de João Nicolau. O humor do realizador de Rapace continua sublime. Curtas de Vila do Conde chegou ao fim, mas com a promessa de que para o ano haverá mais.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (17-07-2009)

Diz-me o que assinas, dir-te-ei quem és.

“Contracções” na Culturgest
A realidade empresarial dos contratos surreais


“Contracções” é um espectáculo que nos fala do mundo empresarial, da realidade dos despedimentos e daquilo a que estamos dispostos a renunciar para manter um emprego. A peça, com encenação de Solveig Nordlund, está em cena na Culturgest até sábado. A interpretação é de Joana Bárcia e Cecília Henriques.

A apresentação de uma peça com esta temática não poderia ser mais actual. Integrado no Festival de Almada, “Contracções” explora, no palco da Culturgest, um universo de fragilidades humanas: a incapacidade de acção perante as empresas que contratam. Assinado por Mike Bartlett – jovem dramaturgo britânico – o texto aborda o tema dos despedimentos, das condições estabelecidas nos contratos de trabalho, na forma de integração social dentro das empresas, de uma forma extraordinária, em que recorre à sátira, conseguindo um texto divertido, mas de alerta de consciência.
Emma é uma jovem vendedora que, em determinado momento da sua vida, decide assinar um contrato com uma multinacional. Nesse papel especifica-se as condições e as formas do trabalho, nomeadamente o grau permitido de relacionamento de colegas dentro da empresa. A directora controla tudo ao milímetro, verificando se todas as cláusulas do contrato estão a ser cumpridas. É um tema levado ao limite, às últimas consequências, tocando o absurdo, mas que, infelizmente, toca muitas vezes a realidade. O direito ao trabalho e as exigências laborais são algo cada vez menos considerado por quem pratica este género de contratos. Dizem eles: “nada de relações românticas ou sexuais”. Mesmo que se concorde, porque temos de assinar um papel que nos indica este tipo de comportamentos a manter. Que cores de verniz posso usar?
Segundo a encenadora Solveig Nordlund, este é um espectáculo que tem actualidade dada a época de despedimentos, da crise, conjuntura que leva as pessoas a sacrificar os seus próprios valores e crenças para manter o emprego. «“Contracções”, do jovem dramaturgo britânico Mike Bartlett, trata de um assunto sinistramente actual. É uma peça humorística que nos deixa o riso atravessado. A cada dia que passa parece-me mais realista.» – diz Solveig. Que nos riamos, para não chorar, mas este mundo existe mesmo. E quando não vem nos contratos ainda há a hipótese da crítica pela não integração neste meio.
Estreado no passado dia 13 de Julho, o espectáculo ficará em cena, no Pequeno Auditório da Culturgest, até amanhã, sempre às 21h30.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (17-07-2009)

Sons do mundo rumo a Sines

O regresso das músicas do mundo
FMM em Sines e Porto Covo


Sines já é conhecida como a capital da “world music” em Portugal. Aliás, este é o 11º ano em que esta cidade recebe o Festival Músicas do Mundo (FMM). Entre 17 e 25 de Julho, em Sines (com extensão para Porto Covo), o público poderá assistir a um conjunto de concertos que integra alguns dos melhores projectos ao nível das músicas do mundo.

O Festival de Músicas do Mundo está de volta à costa alentejana, com 37 projectos musicais programados, dos quais mais de 20 estão em estreia absoluta no país. A origem dos projectos tem as mais variadas origens: Europa, África, Médio Oriente, Ásia e Américas.
A primeira parte do festival – 17, 18 e 19 de Julho – tem lugar em Porto Covo. A partir de 20 de Julho, a música transita para os três palcos da cidade de Sines: Centro de Artes de Sines, Praia Vasco da Gama e Castelo medieval. De Cuba chega um pianista – Chucho Valdés – um dos melhores no jazz, que conta já com cinco Grammys ao longo da sua vida artística. Da Índia chega o mestre da “slide guitar”, Debashish Bhattasharya, eleito melhor artista da Ásia / Pacífico nos BBC Radio 3 World Music Awards 2007. Ainda neste grupo de músicos convidados premiados pelo mundo, está o grupo de hip hop senegalês Daara J Family, melhor grupo africano da edição de 2004 dos mesmos prémios, e um dos mais interessantes projectos da folk europeia, a banda polaca Warsaw Village Band, revelação com selo BBC em 2003.
No campo das revelações vêm as cumbias psicadélicas de Chicha Libre e a doce música de intervenção de Rupa & The April Fishes, exemplos do melhor da criação musical cosmopolita com origem nos EUA. Fazem ainda parte deste conjunto de revelações o grupo chinês Hanggai, a cantora israelita Mor Karbasi e o quarteto de jazz britânico Portico Quartet, todos autores de discos de estreia lançados em 2008, com boa recepção.
Além disto, constituem promessas de espectáculos, dada a sua componente visual forte, os congoleses Kasaï Allstars, o brasileiro Cyro Baptista, o argentino Ramiro Musotto, a orquestra de Afrobeat do nigeriano Dele Sosimi e a Orquesta Típica Fernández Fierro, um dos melhores agrupamentos de tango argentino da actualidade.


Em palco sozinhos, mas prometendo também bons concertos, foco no “bluesman” James Blood Ulmer, uma das figuras de referência da música negra norte-americana, no trovador do Burkina Faso, Victor Démé, e em Mamer, um surpreendente jovem cantautor com raízes do interior da China.
Destaque ainda para os italianos Circo Abusivo, numa fusão cigana, para os britânicos The Ukrainians, que nos trazem folk punk, e a mistura de jazz, heavy metal e “world music” da banda finlandesa Alamaailman Vasarat.
Em termos de projectos com origem lusófona, os nomes sonantes são os dos O’questrada, Wyza, que traz música angolana contemporânea, Carmen Souza, com jazz vocal de sabor cabo-verdiano, o duo Assobio, o sitar indiano de Paulo Sousa, o quinteto Melech Mechaya, e ainda Janita Salomé, Uxia Senlle, Acetre, Narf e Manecas Costa.
Um dos concertos imperdíveis será certamente o do cantor Bibi Tanga, natural da República Centro-Africana, que terá a seu lado o DJ francês Le Professeur Inlassable.
A encerrar o festival, no dia 25 de Julho, estará primeiro o jamaicano Lee ‘Scratch’ Perry, uma das figuras mais importantes do reggae e do dub, que terminará os concertos no palco do Castelo, e depois os franco-argelinos Speed Caravan que fecham o festival, junto à Praia Vasco da Gama.
O FMM é uma organização da Câmara Municipal de Sines e tem vindo a dinamizar a cidade através desta festa, além de promover a descoberta de novos artistas e de expressão musical em Portugal. Para este ano, a organização espera mais de 80 mil espectadores. O preço do bilhete para cada noite de música é de 5 euros em Porto Covo e de 10 euros no Castelo. O custo dos espectáculos no Centro de Artes de Sines varia entre os 5 euros (22, 23, 24 e 25 de Julho) e 10 euros (20 e 21 de Julho). Os sete concertos realizados na Avenida Vasco da Gama, junto à praia, têm entrada livre.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (10-07-2009)

O cinema invade Vila do Conde

17º Curtas de Vila do Conde
Festival Internacional de Cinema


Está de volta o “Curtas Vila do Conde”, um festival internacional de cinema, que conta este ano com a 17ª edição. Simultaneamente acontece a reabertura do Teatro Municipal de Vila do Conde, que esteve em remodelação desde 2006. De 4 a 12 de Julho, Vila do Conde transforma-se, recebendo uma série de filmes que no seu todo constroem uma programação emblemática e que privilegia a diversidade.

O Curtas Vila do Conde começa amanhã e durante nove dias apresentará um conjunto de abordagens e propostas do universo cinematográfico, cruzando-as com outras linguagens artísticas como as artes plásticas, vídeo-arte e música.
Em foco estarão dois cineastas libaneses – Joana Hadjithomas e Khalil Joreige – em retrospectiva, através da projecção de curtas e longas-metragens, mas também fotografia e instalação vídeo. Também em destaque, mas integrada na secção “In Progress”, está a filandesa Salla Tykkä, que tem vindo a desenvolver um percurso singular entre a fotografia, o vídeo e o cinema, e cuja obra tem vindo a ser vindo a ser aclamada a nível internacional.
No que diz respeito às secções competitivas, o festival integra a “Competição Internacional”, com aproximadamente 40 curtas-metragens de todo o mundo, a “Competição Nacional” com cerca de 15 filmes em estreia absoluta, a competição de filmes de estudantes portugueses, “Take One!”, a competição “Remixed” para filmes experimentais, e ainda uma competição de vídeos musicais e uma competição “Kids”, com filmes para os mais jovens.
A competição nacional mostrará 11 filmes que reflectem o momento de prestígio internacional que o cinema português atravessa actualmente, sendo a maioria estreias. Também a secção “Take One!” poderá mostrar novos artistas nacionais, já que apresenta trabalhos dos estudantes das escolas de cinema e audiovisuais portuguesas. Composto por uma competição de filmes de escola, conta com uma selecção final que resultou num total de 12 filmes, e proporciona ainda um programa formativo, sob a forma de workshops.
Uma das características essenciais do Curtas tem sido a sua capacidade de adaptação e de crescimento. Este ano apresenta duas novas secções competitivas: a competição “Remixed”, onde está mais presente o experimentalismo, através de curtas, longas, live cinema, filmes concertos, performances e instalações que exploram a flexibilidade dos territórios do cinema com outras áreas artísticas; e a pensar no público mais jovem, a nova secção “Curtinhas”, uma aposta na formação e sensibilização de públicos que resulta das experiências anteriores do Curtas e do projecto anual ANIMAR, que há 4 anos programa actividades de educação pela imagem dirigidas a crianças e jovens de diferentes faixas etárias. Para além de uma série de outras iniciativas – workshops para pais e filhos, espaço infantil nas instalações do Festival – inclui uma competição de filmes para crianças.
A secção “In Progress” vem uma vez mais revisitar autores cujas obras foram já exibidas em Vila do Conde, acolhendo o mais recente trabalho do realizador norte-americano Jim Jarmusch em antestreia nacional, e o regresso de Manoel de Oliveira, após a homenagem realizada em 2008 pelo Curtas a propósito da comemoração do seu 100º aniversário, com a curta-metragem “Romance de Vila do Conde”, filmada na cidade na década de 60 com a participação de José Régio.
O festival conta ainda com o programa especial “Back to the future”, numa revisitação ao futuro, este ano dedicado à produção cinematográfica da Grécia, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Roménia. Ver-se-ão as utopias do século passado, que nos fazem regressar a um futuro brilhante.
Simultaneamente ao festival, decorrerá o 13º Mercado da Curta Metragem, dedicado exclusivamente a profissionais, que permite o visionamento em vídeo de todos os títulos inscritos, curtas-metragens recentes de todo o mundo listadas com todos os dados mais importantes.
A sessão oficial de abertura do Festival acontece amanhã, às 22h00, na Sala 1 do Teatro Municipal de Vila do Conde, com o filme-concerto de Tigrala, projecto de Norberto Lobo e mais dois músicos, que interpretará uma banda sonora original para “Tabu” (1931), o último filme do cineasta alemão F.W. Murnau, co-realizado com Robert J. Flaherty, e ainda com a estreia nacional do filme "The Limits of Control" de Jim Jarmusch. Consulte o programa completo em www.curtas.pt.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (03-07-2009)

A Paixão em “Pitié!”

Novas dimensões de Bach
Criação de Platel e Cossol


“Pitié!” é o mais recente trabalho de Alain Platel e de Fabrizio Cossol. Um espectáculo que partiu da “Paixão segundo São Mateus” para criar algo baseado nas ideias de colectividade, de partilha, de paixão em vez de compaixão, onde aquilo que se procura é quase uma mensagem contrária à de sacrifício. As vozes ecoam pelo palco, os movimentos são de tensão, mas “I love you” é a mensagem que acaba por apaziguar as almas que assistem a este diálogo entre corpo e voz, entre Cossol e Platel, e entre os dois e Bach. Dias 3 e 4 de Julho, no Centro Cultural de Belém. Mais tarde, no Porto.

“Pitié!” surge no seguimento da experiência de 2006, com “VSPRS”, em que também Platel e Cossol foram co-autores. O espectáculo tem como fio condutor a transposição musical da Paixão de Cristo, composta por Johann Sebastian Bach, aqui delicadamente reorquestrada por Fabrizio Cassol, mas Platel confere a esta obra-prima de Bach uma inesperada dimensão de sensualidade e cor. Cassol centra-se na dor de uma mãe, parte que não existe na versão original da “Paixão segundo São Mateus”, no que diz respeito ao inevitável sacrifício dos seus descendentes. A parte de Cristo é adaptada para duas almas com um destino comum, conferindo sentido à composição. Cassol optou por três cantores: uma soprano para a mãe, e duas vozes muito parecidas uma com a outra (contralto / mezzo e contratenor) para as crianças. A orquestra está assente no Trio Aka Moon, juntamente com Magik Malik (flauta e vozes), Tcha Limberger (violino), Phillippe Thuriot e Krassimir Sterev (acordeão), entre outros. A história é transformada em música. Nas vozes estarão Claron Mc Fadden, Laura Claycomb, ou Melissa Givens; Cristina Zavallon, Maribeth Diggle ou Monica Brett-Crowther e Serge Kakudji. Interpretam o espectáculo, os bailarinos do “les ballets C de la B”: Elie Tass, Emile Josse, Hyo Seung Ye, Juliana Neves, Lisi Estarás, Louis-Clément Da Costa, Mathieu Desseigne Ravel, Quan Bui Ngoc, Romeu Runa e Rosalba Torres Guerrero.
“Erbarme dich” é uma das árias mais conhecidas da “Paixão segundo São Mateus”, sendo também um dos alicerces da música e conteúdo composta por Cassol. Surgem várias questões: “a nossa capacidade vai além da piedade? A compaixão será algo que ansiamos ardentemente quando a vida e morte se tornam demasiado opressivas?” O tema principal da “Paixão segundo São Mateus”, abordado intensamente, é o sacrifício individual, o de nós mesmos. “Para quê e para quem estaríamos prontos a sacrificar a nossa própria vida?” – esta é uma pergunta que não parece ter muito sentido tendo em conta a sociedade contemporânea, mas Alain Platel coloca-a aos bailarinos e faz-nos pensar sobre isto. Platel quer trabalhar com os bailarinos na forma de dança “bastarda” procurando uma tradução física de emoções muito intensas, processo que já vem de “VSPRS”, e acaba por conseguir criar, com os seus bailarinos, com os músicos e cantores, um espectáculo que assenta na força do grupo, na união, já que ele aspira a algo que transcenda o individual.
O termo “compaixão” dá-nos antes “a paixão partilhada com os outros”. Aliás, a mensagem do primeiro dueto é: “I love you”. São duas horas de espectáculo. Desde os primeiros sons, os primeiros movimentos dos corpos em palco que se vive a ideia de sacrifício e de compaixão, mas em “Pitié!” existe uma ideia de paixão, mais do que compaixão, uma mensagem que é murmurada isolada e colectivamente, através dos corpos e dos sons, corpos que provocam tensão num espectáculo em que são as vozes interiores que sobem à superfície e as exteriores vêm de um certo desejo de encontra. Diz quem viu que se sai sereno, apaziguado e desarmado do espectáculo. E depois da vinda do mestre Platel a Lisboa, o espectáculo “Pitié!” seguirá para o Porto para desarmar mais algumas almas. Nos dias 7 e 8 de Julho, no Teatro Nacional São João, integrado no “Dancem! 09”.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (03-07-2009)
Créditos da imagem: Chris Van der Burght

CocoRosie no CCB

Uma viagem intensa
A dupla da inocência e da sensualidade

Vieram e arrasaram de uma forma intensa. A dupla CocoRosie esteve primeiro em Vila Flor, num Centro Cultural esgotado (20 Junho) e, na noite seguinte, no Grande Auditório do CCB. O segundo espaço não encheu para receber as CocoRosie, mas quem decidiu ir saiu mais uma vez rendido a este novo mundo.




Bastou entrar no CCB e ver o palco pintado de objectos vários e brinquedos, que nos levavam para o tal universo onírico, para começar a viagem. E essa foi realmente intensa, encantadora e sublime.
Bianca e Sierra surgiram com uma bandeja de chá, que bebericaram na frente do palco. Começaram com uma lengalenga daquelas que as miúdas da escola primária cantam no recreio, e foram apresentando uma série de canções, que tanto nos transportavam para o R&B, como para a melancolia e a magia de “La maison de mon rêve”. Ficámos muitas vezes entre a inocência e a sensualidade, conseguidas pela música, mas também pela presença de Sierra e Bianca. Até as projecções se integraram nesta dualidade: onírico/real, infantil/sexual, mostrando as eternas imagens dos “Ursinhos Carinhosos” e dos “Pequenos Póneis”, mas também imagens de praias, de pessoas, de lugares que existem mesmo, de uma pomba branca que voa e não sai do mesmo sítio, de Barbies e modelos americanas, desconstruindo ideais de beleza, entre maços de dólares e fogo-de-artifício.


Acompanhadas por um pianista/teclista e por um baterista, desta vez as manas não trouxeram Tez, o beat-boxer que as costuma acompanhar em concerto, sendo Bianca que através da mesa de mistura nos foi dando o beat, já que a bateria foi sempre bastante monótona, não trazendo grande mais-valia ao concerto. A troca de instrumento dos músicos foi quase constante, principalmente para Sierra que tocou piano, harpa e guitarra, entre outros. Bianca esteve sempre mais ligada à experimentação, através de objectos que nos vão dando sons meio infantis misturados com gravadores e instrumentos de sopro. O concerto passou por “La maison de mon rêve”, por “Noah’s Ark” e “The Adventures of Ghosthorse”, tendo ainda tempo para apresentar o novo disco “Coconuts, Plenty of Junk Food”. A interacção entre as duas é sublime, é mais um diálogo com duas pessoas que valem mesmo por si só, criando momentos perfeitos entre a suavidade da voz de Sierra-Rose, que toca tantas vezes a ópera, e a batida e segurança das vocalizações de Bianca. Este concerto passou pela folk electrónica, R&B, e dream pop. A esfera indie intimista foi envolvida por tantos outros sons.
Já no final surgem duas mulheres para dançar, quebrando um pouco todo o ambiente que tinha sido criado, mas Sierra e Bianca estão em festa. Com dois encores, um em que nos oferecem a incrível versão de “Turn me on”, outro onde Bianca faz VJ e DJ com um vídeo de Alexyss Tylor “Love Honor & Respect Your Vagina” directamente do youtube, a despedida foi difícil. Nunca pensei ouvir no Grande Auditório do CCB as CocoRosie, muito menos gritando “Vagina Power”. Rendo-me uma vez mais.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (26-06-2009)

Créditos das imagens: Nuno Moreira

Dancem! agora ou calem-se para sempre

Dancem! 09 no Porto
11 espectáculos de dança contemporânea

Há 13 anos atrás disseram pela primeira vez: “Dancem!”. Estamos em 2009 e a dança no Porto é contínua, para felicidade daqueles que têm visto as artes performativas crescer, mas é sempre entusiasmante poder ver o Alain Platel e o Philippe Decouflé na mesma semana que a Olga Roriz e o Paulo Ribeiro. Dancem! é um conjunto de espectáculos de dança contemporânea, que decorrem entre 25 de Junho e 12 de Julho, no Teatro Nacional São João e no Teatro Carlos Alberto.



Já passaram pelos palcos deste festival de dança os espectáculos de Clara Andermatt, de Gilles Jobin, Martine Pisani, de La Ribot, dos DV8 e também de Tiago Guedes e Francisco Camacho. A ideia do Dancem! é mesmo esta: a de criar um diálogo activo entre uma geração de criadores nacionais e internacionais dentro da esfera da dança contemporânea. A programação da edição deste ano está a cargo de Paulo Ribeiro, tal como aconteceu em 1997, e revela abrangência e abertura. Na totalidade são 11 espectáculos que se dividem entre o Teatro Nacional São João e o Teatro Carlos Alberto.
A programação tem início no dia 25 de Junho, com o colectivo belga Peeping Tom, que traz “Le Jardin” (25 de Junho), “Le Salon” (26 de Junho) e “Le Sous Sol” (28 de Junho). Em “Le Jardim” exploram as fronteiras da normalidade, enquanto em “Le Salon” nos falam da velhice e do fim de uma família. A trilogia termina com “Le Sous Sol”, que escava no além-túmulo, mas com muitos regressos ao passado. Em todas as peças se mistura teatro e dança, numa via solitária onde se vive das pequenas felicidades da vida.
No entretanto, no dia 27 de Junho, no Teatro Nacional São João, Olga Roriz apresenta “Paraíso”, para depois, no dia 30, nos levar antes ao “Inferno”, no mesmo palco. Olga Roriz escolhe um conjunto de canções e a partir daí constrói a peça, sem chegar à ilustração. Se na primeira não queremos sair, na segunda também não, porque em “Inferno” não há a noção de bem ou de mal, há antes música libidinosa do Brasil.
Nos dias 3 e 4 de Julho, ambos os teatros recebem espectáculos. No São João é possível ver Philippe Decouflé, com “Sombreros”, onde se vive o poder das sombras, no domínio da experimentação, acompanhadas por Brian Eno e Libolt. No Carlos Alberto, Né Barros apresenta “Story Case”, que, segundo o criador, “trata de lugares vazios e de pessoas sem história, no sentido de uma história ainda não vista, ainda não realizada. Tal como o corpo na dança, os indivíduos em Story Case surgem-nos e é no decorrer do tempo que os vamos documentando até eles se tornarem personagens. (…)”.


Philipe Decouflé apresenta um outro espectáculo – “Solo”, nos dias 6 e 7 de Julho, no Teatro Carlos Alberto. Ele dança na primeira pessoa, a sua existência está na dança, disso não há dúvida. E este espectáculo trará uma série de imagens suas, fragmentos de si.
Alain Platel também estará presente, ou não fosse ele o mestre dos C de la B. Depois do espectáculo no CCB (dias 3 e 4 de Julho), Alain Platel seguirá para o Porto para desarmar mais algumas almas. A mensagem de “pitié!” é: “I love you”. Surgem corpos que procuram vozes, interiores e exteriores. Diz-se por aí que quem o vê sai desarmado. Nos dias 7 e 8 de Julho, no Teatro Nacional São João.
Paulo Ribeiro, programador do ciclo, apresenta “Maiorca”, no mesmo Teatro, nos dias 10 e 11 de Julho. “Há muitos anos atrás, Jorge Salavisa desafiou-me para coreografar os 24 Prelúdios de Chopin interpretados pelo Pedro Burmester. Na altura não me senti capaz de encarar tamanho desafio. Hoje faz todo o sentido. (…).” – apresenta o próprio.
O espectáculo que fecha o ciclo é “Orphée et Eurydice”, de Marie Chouinard, no Teatro Carlos Alberto (10 a 12 de Julho). Uma obra excessiva, com humor e intimidade, uma dança exploratória e demoníaca, numa multiplicidade de caminhos.
18 dias, 11 espectáculos de dança na cidade do Porto. Na sua base dancem! é um convite aberto à procura da atenção de uma multidão de vozes, de corpos que têm uma forma própria de comunicar. Dois espaços que recebem nomes incontornáveis do movimento contemporâneo. Só é preciso disponibilidade para ouvir e ver, sentir nos casos mais intensos.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (26-06-2009)

CocoRosie: Universo onírico e sensual

As manas Bianca e Sierra
Dois concertos em Portugal


CocoRosie é o nome da banda, que é como quem a compõe: “primeiro estranha-se, depois entranha-se. Elas são duas irmãs que se renderam ao indie intimista com dream pop e fazem-nos render ao seu universo, onde às vezes é possível ver imagens de pequenos póneis, outras vemos duas mulheres sensuais em palco. Estão em Portugal para dois concertos imperdíveis: um em Guimarães (20 de Junho, no Centro Cultural Vila Flor), onde costumam passar alguns dos melhores da música indie, e outro em Lisboa (21 de Junho, no CCB).

Conto-vos a história: Sierra-Rose e Bianca-Leilani Cassady são irmãs. Duas mulheres fisicamente, e provavelmente também emocionalmente, distintas. Nasceram na América – Sierra nasceu em Fort Dodge, Iowa, e Bianca no Havai, e são a terceira e a quarta filha do espiritualista Timothy Casady e da artista e professora Tina Hunter. O gene estava lá e, no crescimento, os pais optaram por métodos diferentes dos do ensino tradicional, optando pela aprendizagem através da experiência. Quando Sierra tinha 5 anos e Bianca 3, os pais separaram-se e cada uma delas foi criada por um deles, mas ambas cresceram num meio de procura de criatividade. Une-as este projecto. Sierra-Rose tinha sido desafiada a seguir carreira na ópera parisiense, como soprano, mas não quis. Bianca-Leilani, também conhecida por "Red Bone Slim", tem um estilo quase oposto, numa independência romântica qualquer. Reencontraram-se em Paris, em 2003, no apartamento em que de Sierra vivia desde 2000 e as CocoRosie surgem aí. Inicialmente fizeram um álbum de hip hop sob a alcunha de “Word to the Crow”, apenas alguns dias antes do primeiro álbum das CocoRosie, “La Maison de Mon Rêve” (2004).
Colaboram com Antony, Devendra Banhart, Andrew Bird, entre outros, como podemos ouvir por exemplo na compilação “The Enlightened Family: A Collection of Lost Songs", primeiro disco lançado pelo selo da Bianca, Voodoo Eros. Estas ligações começam logo a desvendar o tipo de música que nos esperava, mas basta vê-las em palco, onde recorrem frequentemente a projecções onde vemos imagens de desenhos animados infantis como “O Meu Pequeno Pónei” ou os “Ursinhos Carinhosos e florestas, para nos deixarmos levar para um outro universo. Apresentam-se frágeis, delicadas, sensuais, fazendo-nos viajar entre um mundo onírico e a realidade do palco. Esta dicotomia entre fantasia e realidade é-nos também oferecida por uma outra, que é a integração de um conjunto de instrumentos de brincar com os instrumentos reais – piano, harpa, teclados. Costumam também ser acompanhadas por Tez, um “human beatboxer”, que apenas com o uso da sua voz faz todas as batidas e cortes. Elas praticam indie pop umas vezes mais folk outras mais electrónica. Aproximações às vozes de Joanna Newson, Billie Holiday ou outras divas são possíveis exactamente pela admiração de vozes femininas de tons totalmente distintos. Ganham terreno nas vocalizações e nos arranjos e chegam muitas vezes ao hip-hop (acompanhado por Tez, normalmente). As fronteiras entre tudo isto são ténues, é tudo meio híbrido. Depois de “La Maison de Mon Rêve,” (2004 - Touch and Go/Quarterstick Records), segiu-se “Beautiful Boyz” (2004 - Touch and Go/Quarterstick Records), “Noah's Ark” (2005 - Touch and Go/Quarterstick Records) e “The Adventures Of Ghosthorse And Stillborn” (2007), o álbum que trouxeram à Aula Magna no dia 14 de Abril desse mesmo ano. Aquele trabalho era quase um estudo exploratório de uma névoa obscura, entre o sonho e o selvagem, como uma ópera.
A dupla de songwriters norte-americana vem agora para um espectáculo dedicado ao seu mais recente trabalho: “Coconuts, Plenty of Junk Food”, que estará à venda exclusivamente nos concertos. Sierra Rose Casady entrega-se à harpa, ao violão e presenteia-nos com a sua voz. Bianca Casady certamente cantará e continuará a explorar o universo dos brinquedos que emitem sons, complementando e construindo as canções, com vocalizações seguras. A interacção entre as duas é sublime, a atmosfera que criam é divinal, encantadora e permite-nos explorar os sentidos. Ou se ama, ou se odeia. É verdade que correm riscos com este formato, mas quem gosta, gosta sempre. Este é um regresso aguardado, depois do concerto no Lux em 2004 e de outro, na Aula Magna, em 2007. Já na altura Sierra e Bianca nos encantaram. Será quase de certeza mais uma viagem intensa.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (19-06-2009)

“Silenciador” apresentado na Culturgest

Um espectáculo feito a partir do futuro
Jacinto Lucas Pires por Marcos Barbosa



“Silenciador”, um texto de Jacinto Lucas Pires, fala-nos de dois detectives e do seu quotidiano de funcionários públicos. Morre alguém. Um crime. Surgem uma série de perguntas, jornalistas que escrevem palavras sobre este acontecimento ou sobre aquilo que se explora em torno do acontecimento. Investiga-se o crime. Esta é a história, mas o espectáculo é mais do que isso. Está próximo do cinema e próximo do teatro, mas é o futuro, foi a partir daí que se chegou aqui. Começou-se no futuro para chegar a este espectáculo encenado por Marcos Barbosa, no presente, na Culturgest, de 17 a 19 de Junho.

Jacinto Lucas Pires tem uma série de livros publicados, curtas-metragens realizadas e peças de teatro escritas. Marcos Barbosa é fundador de .lilástico, onde encenou peças de David Mamet, Jacinto Lucas Pires e José Tolentino Mendonça e é director artístico do Teatro Oficina de Guimarães. Juntam-se neste espectáculo, fora de palco, como os dois detectives, esses em palco e exploram, questionam-se. Os primeiros sobre o momento, sobre o futuro, os segundos sobre o crime.
Dois detectives, o Santos e o Manel, que são próximos como irmãos, vivem o dia-a-dia de funcionários públicos numa espécie de estado policial do futuro. O Santos é mais experiente, o Manel é o polícia novato que é impressionável, ainda acredita na regra e quer ser como o Santos. É assim que tudo começa, um lugar pré-fabricado, pós-moderno. Dá-se um crime no seio da elite, um homem muito importante é assassinado. “Quem é o morto ao certo? É mesmo o empresário público que os jornais descrevem em notícias breves, nas páginas da sociedade? Ou alguém mais perigoso? Um “agente comunicador”? Um supermarqueteiro? Um espião interno-duplo?” – surgem uma série de questões que ecoam no espaço e no tempo. Estão dois homens num escritório a trabalhar, a perguntar-se todas estas coisas, a tentar encontrar respostas para descobrirem o criminoso. De repente surge uma mulher, estrangeira, que fala de forma diferente a língua oficial do estado. Surgem mais questões: será esta forma de falar uma incapacidade, um indício ou um truque?
Esta é a peça “Silenciador” de Jacinto Lucas Pires, que é isto, nada mais do que isto. A questão é que tudo começa com: “Era uma vez um futuro…” Estamos num futuro indefinido, em que o Estado é vigiado, os polícias investigam o crime, são funcionários públicos que cumprem as suas obrigações, mas provavelmente são também culpados de alguma coisa. Lucas Pires apresenta-nos um futuro como o de hoje, em que também há amor, casamentos, ambição e vigilância. E pergunta-se “Quem guarda o guarda?” É por estas questões que percebemos que o futuro não é melhor do que o presente. Porque é que Lucas Pires fala do futuro? “Porquê? É essa a pergunta? Porque, às vezes, falar no futuro é a forma mais clara de atacar o presente. Atacar, pois. Mas que ninguém se assuste demasiado, também não é assim tão violento. Sim, prometo. Usei um silenciador.”. Esta é a resposta do próprio.
Marcos Barbosa provavelmente também teve muitas perguntas na sua cabeça quando leu a peça pela primeira vez, mas depois avançou. Percebeu rapidamente que aquele texto se encenava de dentro, partindo da violência da palavra escrita para a forma da história. O seu universo era o das bandas-desenhadas, mas também o do cinema, o do teatro e isso vê-se neste formato que acaba por apresentar. Esta é uma peça onde se joga com os monumentos instituídos nas histórias policiais e usa-se e abusa-se dos elementos míticos dessa esfera meio obscura dos detectives, onde a palavra pode ser vista como subversiva.
A peça acontece agora, Marcos Barbosa tornou-a presente. “E aqui, presente significa tempo, espaço e objecto, porque é uma peça escrita hoje, nesta cidade, e que estamos a construir como momento para ser vivido agora, na ilusão do estar-a-acontecer, mas também na maravilha da sua impossibilidade e neste prazer de o imaginar.”, escrevia quando começou a trabalhar o texto.
Os actores (Diana Sá, Emílio Gomes e Ivo Bastos) fizeram da palavra o corpo, o espectáculo, em que há pouca luz, há diálogos curtos, fumo de cigarros, chapéus, armas. Há isto tudo que vem deste universo, mas afinal está mesmo perto do cinema, muito preto e branco, com alguns heróis e vilões da BD, mistério e ficção científica. É cinema, mesmo que Jacinto Lucas Pires nos peça para não pensar cinema, e é teatro, mesmo que ele também nos peça para não pensar teatro. É um texto desde o futuro e uma peça encenada desde dentro e isso é mais do que isto tudo junto. “Silenciador” foi primeiro desafiar Guimarães a partilhar o mistério e agora o convite é feito a Lisboa. “Fica o desafio à cidade para que venha partilhar connosco esta aventura quase novela policial que é a criação de um teatro de nova dramaturgia.” Do futuro para o agora, de dentro para fora.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (10-06-2009)

Créditos da imagem: Pedro Vieira de Carvalho

“White Works” na Culturgest

Um concerto a solo tocado a dois
Diálogo entre João Paulo e Carlos Bica


João Paulo esteve na Culturgest para tocar Carlos Bica. No passado dia 4 de Junho o pianista subiu ao palco do Grande Auditório e presenteou-nos com um concerto único, de grande intensidade e beleza. “White Works” serviu de base ao espectáculo, um disco que reúne uma série de composições de Carlos Bica adaptadas e tocadas por João Paulo. Foi um privilégio ouvi-lo tocar. Um momento que viveu disso mesmo, do agora.

A expectativa era grande. Carlos Bica tinha dito que se sentia lisonjeado por João Paulo tocar as suas composições e sabíamos de antemão da qualidade deste pianista de quem nos anos 80 se segredava o nome, como sendo um dos melhores. João Paulo andava de boca em boca, entre músicos como Vitorino ou Sérgio Godinho. Se Carlos Bica se sentia lisonjeado e orgulhoso do trabalho de nome “White Works” e por ser tocado por João Paulo, como nos sentiríamos nós? Sentimo-nos mesmo tocados por este momento.
João Paulo tem uma figura meio de criança, mas em corpo de homem, pequeno, e vestido de preto, mas quando se senta e fica perante o piano, com a intensidade que nos transmite torna-se um grande músico. Começou com “Improvisação”, seguida de “Canção número 2” e “Believer”, todas deste disco que trazia agora à Culturgest. Com a primeira sequência de três músicas conquistou o público. Levantou-se e disse-nos algumas palavras e entre coisas engraçadas que nos dizia com pouco à vontade, acabou por nos deixar à vontade, e mesmo numa sala tão grande como esta, sentíamos a proximidade ao músico e à música. Ele estava ali para tocar piano e esse é o seu mundo, que num instante se torna o mundo da audiência. Seguem-se a composição 1 que acabou por ter o nome de “A princesa e o largo” e “White Vivace”, e assim as teclas do piano ganham uma dimensão inexplicável, os sons mexem connosco física e emocionalmente e quando já estamos totalmente rendidos surge Carlos Bica para duas composições tocadas por ambos, e com uma qualidade extrema. “Portuguese Seaman” e “2009”, duas músicas brilhantes que não estão neste trabalho, tendo sido “2009” um dos momentos mais bonitos deste espectáculo com um diálogo em que quase sentíamos as palavras sonoras a ser acolhidas pelas mãos um do outro, num momento de genuína partilha.
Carlos Bica sai de palco com o seu contrabaixo, mas fica lá a sua energia, e João Paulo avança com “Improvisação”, “Profeta” e “Heranças”, com a qual esperava terminar o concerto. Já em encore toca uma música que define como “demasiado romântica”, mas que Carlos Bica lhe pediu muito para tocar, e que serviu de banda sonora a um filme de Buster Keaton. O pianista termina com “Waiting for Tom”, uma homenagem a Tom Waits.
O concerto provou a sua consistência enquanto músico, a sua magia em palco, que se confirma tão grandemente a solo. João Paulo é mais do que um excelente pianista, ele cria efectivamente o momento. Sentiu-se a força da improvisação, a entrega a cada som. E de facto este disco, como dizia João Paulo “(…) realiza materialmente um paradoxo, bonito como todos os paradoxos: tocar com alguém a solo. Normalmente toca-se com alguém em duo, em trio, em quarteto, etc… não a solo. A solidão implicaria a ausência do parceiro. Aqui não. Toca-se a solo com o outro. O contrabaixo de Carlos Bica está ausente, é certo, mas essa ausência desenhou o espaço, traçou os limites e abriu as perspectivas aos sons. O Carlos Bica é um verdadeiro compositor, gosto de imaginá-lo como um realizador de cinema musical, e é sempre um grande prazer tocar com ele, com ou sem contrabaixo.”. Esta ligação entre os dois músicos, mesmo quando Carlos Bica não estava em palco, transpirou neste espaço e João Paulo conseguiu com este trabalho recriar as composições de Carlos Bica e dar-lhe uma nova dimensão, em que dialogam os dois, em que se respira arte. O concerto deu-nos a sua interpretação sublime. “Há mesmo um tipo que se chama João Paulo, que se senta ao piano, e…”

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (10-06-2009)

“Romeo and Juliet” pelo Nature Theater of Oklahoma

Dias das Histórias (im) prováveis
A forma além das palavras



A história de Romeu e Julieta foi revisitada pelo Nature Theater of Oklahoma. Inserido no ciclo “Dias das Histórias (im) prováveis” do Teatro Maria Matos, o espectáculo “Romeo and Juliet”, com encenação de Pavol Liska e Kelly Copper, deu-nos a oportunidade de ver a esta narrativa de outros prismas.

Os Nature Theater of Oklahoma já tinham estado em Portugal para apresentar “No Dice”, no festival alkantara em 2008. O director artístico do Teatro Maria Matos, Mark Deputter, ex-director do alkantara, programou de novo esta companhia de teatro Nova Iorquina.
“Romeo and Juliet” foi apresentado numa versão muito diferente daquele que conhecíamos, a de Shakespeare, ou não fosse ela assinada por um conjunto de pessoas anónimas, que foi desafiado a contar o que se lembrava desta história, que podia (ou não) corresponder à realidade. O espectáculo afinal não conta mesmo a história deste casal jovem, conta antes as suas interpretações e aquilo que a história significa para uma série de pessoas. É a visão de outros e a percepção da relação que elas têm com esta história, que nos permite a nós próprios perceber que relação temos nós com a história e que diferenças ou semelhanças estabelecemos com a nossa vida.
Um dos elementos mais presentes neste espectáculo é a oralidade. O cenário é constituído apenas por uma estrutura que nos faz lembrar os teatros de marionetas, e os figurinos também nos reportam, de alguma forma, para a época do texto, mas nada mais estava perto de Shakespeare. Todo o trabalho, todo o espectáculo vive da interpretação dos actores, da sua fisicalidade, mas muito da sua forma de dizer o texto. O facto de nos estarem a contar conversas telefónicas, sendo essa a base do discurso, cria uma tensão muito própria no corpo do actor e no espectáculo. Os textos são realmente orais, mais do que teatrais. Toda a teatralidade advém da sua forma de representar, e o que nos dão acaba por ser mais do que o que dizem, pois é também a forma como o dizem.
“Romeo and Juliet” consegue ser divertido e falar de coisas além da história, sendo essa apenas um pretexto para poder falar de relações, de sentidos de dependência, de necessidades humanas e emocionais, de respostas criativas e de formas de estar. Num estilo às vezes absurdo, com elementos surrealistas como a entrada do ponto vestido de galinha a dançar ou o actor a entoar de forma teatral como se dissesse a frase mais importante do mundo: “Bla, Bla, Bla, Bla, Bla, Bla”, o espectáculo vive deste formato de entrega total do actor ao momento e Robert Johanson é brilhante. O resultado é uma reflexão, induzida de forma mais clara no seu final, mas espicaçada ao longo de todo o espectáculo, sobre as percepções humanas daquilo que poderá ser a sua história do Romeu e Julieta.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (10-06-2009)

Créditos imagem: Kerstin Joensson