sexta-feira, 22 de maio de 2009

A luz de Shantala na dança pura e na narrativa



Cruzamentos entre dança indiana e contemporânea
Shantala Shivalingappa, embaixatriz do “Kuchipudi”



Shantala Shivalingappa cruza a dança clássica indiana com a dança contemporânea do ocidente que começou por explorar com Pina Bausch. O estilo Kuchipudi, do qual se tornou embaixatriz no Ocidente, cruza a narrativa com a dança pura, sendo um casamento entre o corpo inteiro e as emoções que a narrativa lhe provoca, alternando momentos e movimentos de dança pura e partes narrativas tirada da mitologia indiana onde toda a arte expressiva, mímica e gestual são exploradas. São estes cruzamentos que propõe em “Namasya” (22 e 23 de Maio, 21h) e “Gamaka” (24 Maio, 17h), no Centro Cultural de Belém.

Shantala Shivalingappa é oriunda de Madras, a quarta maior cidade indiana, situada no sul do país. Foi criada em Paris pela sua mãe. Paris e Madras deram-lhe um cruzamento entre o ocidente e o oriente. Desde cedo que foi orientada para a dança indiana, pela sua mãe, a bailarina Savitry Nair. Inspirada pela pureza do estilo Kuchipudi do seu mestre Vempati Chinna Satyam, foi formada com rigor, mas desde os 13 que dança com alguns dos maiores na cena da dança e do teatro, como Maurice Béjart, Peter Brook ou Pina Bausch, com quem Shantala reconhece ter descoberto uma nova forma de dançar. Essa foi a sua primeira experiência numa forma de dançar que não a dança clássica indiana e assim entrou num novo universo gestual. “Com ela e com os seus bailarinos aprendi a pensar e a sentir o movimento de forma diversa, desde a concepção até à execução: espontaneidade, liberdade e rigor, fluidez, movimento irradiado do corpo mas também do coração.”


Contudo, é no Kuchipudi, um dos inúmeros estilos de dança clássica indiana, que se encontra mais familiarizada. O Kuchipudi é uma dança clássica indiana que surgiu no século XV no sul da Índia. Como todos os estilos de dança indiana, o Kuchipudi tem as suas raízes no Natya Shastra, tratado de arte dramática com mais de 2000 anos que estabelece uma codificação muito precisa para a dança, a música e o teatro. No Kuchipudi, habitualmente acompanhado por canto, percussões, flauta e vina (instrumento de cordas indiano), a dança, a música e o ritmo são desenvolvidos de forma indissociável e é esta forte relação entre os elementos que determina a sua enorme beleza.
Hoje, Shantala divide o seu tempo entre a criação de novas coreografias kuchipudi, digressões dos seus espectáculos a solo, e a colaboração com diferentes artistas ocidentais numa exploração intensa da dança e da música. Estará no CCB durante 3 dias para apresentar “Namasya” e “Gamaka”.
Em Namasya, Shantala revela o seu indiscutível talento em quatro peças bem diferentes: “Ibuki” de Ushio Amagatsu, um dos mestres da primeira geração do butô; “Solo”, que Shantala ensaiou com Pina Bausch e que reflecte as influências que recebeu da coreógrafa alemã; “Shift”, de sua autoria; e “Smarana”, de Savitry Nair, com música tradicional do norte da Índia.
Pegou nestes coreógrafos pelo valor coreográfico e emocional. “Os seus trabalhos tiveram um efeito magnético sobre mim e estimularam o meu desejo de explorar o movimento e a emoção que se solta dele. Fui verdadeiramente seduzida pela ideia de trabalhar com esses dois coreógrafos a partir da minha gestualidade e da minha técnica de dança clássica indiana, acreditando na universalidade da dança, do movimento e da emoção que suscitavam, sem ser necessária uma linguagem técnica comum.”
“Gamaka” é antes um recital de kuchipudi para quatro músicos e uma bailarina. O termo Gamaka designa, na música clássica indiana, “o movimento vibratório sonoro entre as notas. Na dança, o Gamaka seria o movimento desenhado pelo corpo para chegar de um ponto ao outro.” Aqui toda a criação é vibração, e de um enredo complexo de sons e movimentos nasce um conjunto de imagens, emoções e formas. “Gamaka” é dedicada a essa vibração, também chamada OM, de onde toda a criação emana e se reabsorve. Estes dois espectáculos serão a oportunidade de ver uma vez mais a luz de Shantala.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (22-05-2009)

Panos – palcos novos, palavras novas

3 textos, 6 interpretações, que depois se multiplicam
Palavras para adolescentes e adultos


“Panos – palcos novos, palavras novas” conta este ano com a sua 4ª edição. As peças foram escritas por Tiago Rodrigues, Miguel Castro Caldas e Abi Morgan, pensadas para serem representadas por adolescentes. Depois propõe-se aos grupos de teatro escolar/juvenil o desafio de as estrearem. Os actores têm entre os 12 e os 18 anos e os espectáculos têm duração limitada de uma hora. São palavras novas em novos palcos. Primeiro na Culturgest, de 22 a 24 de Maio.

Este ano inscreveram-se 40 grupos, 30 dos quais estrearam os seus espectáculos. Além disso aumentaram também o número de festivais, ou seja, na Culturgest apresentam-se duas encenações por cada texto, e depois muitos dos espectáculos poderão ser vistos fora dos seus locais habituais, pois partem para espaços como o Teatro Viriato em Viseu, os teatros Sá da Bandeira e Taborda em Santarém, O Teatrão em Coimbra e o Teatro Oficina em Guimarães. Esta propagação dos espectáculos deve-se fundamentalmente ao entusiasmo dos que os acolhem, começando a ver-se realmente uma rede de diálogo cultural, à semelhança daquilo que existe entre o projecto “Connections” do National Theatre de Londres e a rede de experiências semelhantes onde os PANOS se integram e que inclui também Itália (Florença e Milão), Noruega e Brasil (São Paulo).
Este ano deu-se assim: fez-se um workshop em Novembro, com os encenadores Jonathan Humphreys, Gonçalo Amorim e Pedro Gil a trabalharem cada um à volta de um texto com os responsáveis dos grupos e a presença dos autores portugueses. Seguiu-se o período de ensaios, com estreias até ao fim de Abril. Agora apresenta-se tudo num festival de encerramento que dura um fim-de-semana alargado, dois espectáculos (dois exemplos) de cada texto.
Sexta, 22 de Maio, às 18h30 “Coro dos Maus Alunos” de Tiago Rodrigues pela Escola de Teatro da Companhia de Teatro Municipal Arteviva – Turma de Continuidade (Barreiro). O texto volta a ser apresentado no dia seguinte à mesma hora, interpretado pelo Clube de Teatro da EB 2,3 El Rei D. Manuel I (Alcochete). “Coro dos maus alunos” de Tiago Rodrigues é a “história de um velho professor de filosofia com uma “alma jovem”, fã de controvérsias e promotor do espírito crítico dos seus alunos em relação à escola.” Versão contemporânea sobre o julgamento de Sócrates.
Miguel Castro Caldas escreveu “Nós numa Corda”, que será interpretado no dia 22, às 22h pelo Fazigual do Agrupamento Vertical de Escolas de Avis, e no dia 24, pelo Grupo de Teatro Persona da EB2,3/S de Moimenta da Beira. Miguel Castro Caldas, a propósito de “Nós numa corda”, diz coisas como estas: “Lembram-se daquele caso do telemóvel que foi filmado e tudo? Da professora e da aluna? No meu tempo não havia telemóveis, claro, mas nunca nenhum professor me tirou nada. Os professores davam. Davam notas, davam faltas, davam fotocópias, davam o livro de ponto ao pessoal auxiliar. Os alunos é que tiravam: boas notas, negativas, tiravam coisas uns aos outros. Mas mudou alguma coisa? A escola, quando se vai lá, aquilo está sempre cheio de alunos. Que nunca crescem. Têm sempre mais ou menos quinze anos. Ou são os alunos que estão de passagem, e os professores a vê-los passar. Cada um puxa a corda para o seu lado, ou o telemóvel. Quem dá e quem tira, quem percorre os corredores? Ou serão os corredores a percorrê-los?”
“Refuga” é o único texto que não é de um autor português. Abi Morgan é mais uma estreia de uma importante dramaturga inglesa que se faz através dos PANOS. Kodjo tem 14 anos mas ninguém acredita nele. Ara vem de Bagdad e ainda ouve as bombas à noite. Chang consegue dar mortais para trás e vem de uma aldeia na China que tem mais de mil anos. Eles têm todos as suas histórias, que contam juntos. Interpretado pelo Na Xina Lua da ES Tondela, no dia 23, e pelos alunos do projecto de Teatro d’O Teatrão (Coimbra), no dia 24.
Três textos de três autores que são interpretados cada um duas vezes, o que dá seis representações, mas depois eles partem por aí pelo país para que todos os ouçam.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (22-05-2009)

Formas animadas espalhadas pela capital

A invasão das marionetas
FIMFA’09 até 7 de Junho





O Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas está na cidade desde o dia 7 e termina no próximo 7 de Junho. Até lá ainda há espectáculos para ver, neste segundo e terceiro fins-de-semana de invasão das marionetas em Lisboa.

Durante um mês, 26 companhias profissionais apresentarão as suas mais recentes criações. No total serão 100 representações aproximadamente, onde podemos ver o trabalho de companhias oriundas de todo o mundo, em espectáculos de sala, de pequenas formas e de rua.
Métalu a Chahuter, uma companhia francesa, apresenta “Pendule”, um concerto de objectos animados, na sala principal do Teatro Maria Matos, hoje e amanhã, às 22h. Um espectáculo sem palavras que pretende apaixonar os espectadores através da sua poesia sonora. Começam por nos dizer: “Os vossos olhos não acreditarão nos vossos ouvidos!” e assim deverá ser, uma vez que este é um concerto semi-automático de objectos animados. Duas pessoas accionam calmamente uma instalação mecânica a partir da reciclagem e reunião de materiais diversos, que, quando colocada em movimento, propaga movimentos e multiplica sons. Cada intervenção dos manipuladores é pontual, concedendo-lhes um papel de observadores cuidadosos da ressonância dos seus gestos.
De 28 a 30 de Maio, o Clair de Lune (companhia do português Paulo Ferreira, sedeada na Bélgica.) apresenta “Le Cyclo Théatre” no foyer do Teatro Dona Maria II. Uma viagem surrealista de alguns minutos pela cenografia de um grande teatro. Este é um teatro de sombras móvel, um mundo em pequena escala, onde através das miniaturas de um teatro de bolso conseguimos ver um enorme universo.
Nos dias 28 e 29, às 21h30, os Alemães Familie Flöz apresentam “Hotel Paradiso” no Dona Maria II. “Hotel Paradiso” é de uma pequena empresa familiar que se mantêm de pé devido aos esforços da sua velha directora. Este espectáculo permite-nos viver um sonho cheio de humor negro e melancolia. Os rostos e protagonistas desta companhia são máscaras e figuras desenhadas com muito amor que ficaram aparentemente sem voz. No entanto, incitam à fantasia, despertam sentimentos melancólicos e lembram-nos que o mistério da verdade está para além das palavras.
No mesmo teatro, nos dias 30 e 31, “Vampyr” do Stuffed Puppet Theatre (Holanda), um conto de fadas para adultos composto por um actor-manipulador, o mestre Neville Tranter, e pelas suas marionetas de tamanho humano.
O FIMFA prova que a marioneta ocupa o seu lugar. Inovadora e atenta ao mundo em que se insere tem-se reinventado de acordo com as mudanças temáticas e as inovações tecnológicas. E as marionetas continuarão pela cidade.


ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (22-05-2009)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Olhar sobre a “Menina Júlia” de hoje


Teatro naturalista à espera de um rasgo

“Menina Júlia” é um texto clássico da literatura dramática universal. O Teatro Dona Maria II levou-o a palco encenado por Rui Mendes e interpretado por três actores: Albano Jerónimo, Beatriz Batarda e Isabel Abreu. Um grande texto sem grandes re-leituras por parte de Rui Mendes, mas que, mesmo assim, nos leva a algum questionamento.

“Menina Júlia” é sem dúvida um dos textos mais representados e um dos mais importantes de Strindberg. A importância e a qualidade deste texto de época é inegável, mas em 1888 faria certamente mais sentido do que nos dias de hoje, mesmo que Beatriz Batarda e Albano Jerónimo consigam realmente passar-nos, através da sua interpretação, o conflito e a maldade que existiria no confronto da condessa e do criado, próprio de uma luta de classes.
O texto explora exactamente duas vertentes, inseparáveis, a da luta de classes e a da luta de sexos, de uma forma política, mas submersa num ambiente romântico, através de uma história de amor trágica. O eco dos primeiros temas (luta de classes e luta de sexos) está hoje mais escondido na sociedade contemporânea, sendo mais difícil dar-lhes um sentido. É nas temáticas do amor, do ciúme, da traição, da sedução, da responsabilidade e da culpa, menos explorados em termos de encenação, que sentimos maior eco naquilo que continuamos a viver hoje: as relações emocionais, o discurso emocional versus o discurso racional, e é nesses momentos do espectáculo que sentimos que os actores também se impõem mais.
Revolucionário por natureza, Strindberg explorou neste texto uma estética naturalista. Esta estética podemos vê-la também na encenação de Rui Mendes e na cenografia, que pretende criar o ambiente da época, mas em que existem alguns traços de modernidade, e pouco simbolismo, uma fome que o texto nos provoca e que seria interessante ver no próprio ambiente e na encenação. Rui Mendes encena um texto marcante pelas inovações estilísticas e pela densidade psicológica das personagens, mas com pouca inovação, rasgo, ou qualquer reinterpretação.
Em termos de interpretação encontramos uma dupla que funciona em termos de empatia em palco: Albano Jerónimo e Beatriz Batarda, com a actriz numa personagem em que explora o seu lado infantil e com bastante intensidade nos seus curtos monólogos, e Albano Jerónimo num registo justo de sofrimento de luta de classes. Contudo, sentimos ambos, ao longo da peça, a dispersar algumas vezes, à procura da reacção do público. De qualquer forma existem muitos momentos de equilíbrio entre os actores e uma qualidade indiscutível. Beatriz Batarda consegue atingir realmente a ideia de fidalga inocente, mas provocadora, o universo da aristocracia e da sua necessidade de jogo de sedução próprio de uma mulher que quer mudar, mas que tem medo do desconhecido. O seu discurso final sobre a responsabilidade individual de escolha e de consciencialização de que esta terá sempre de ser sua é realmente conseguido, transmitindo-nos o choque emotivo que ansiávamos desde o início do espectáculo, já meio desvendado quando fala sobre a relação com a sua mãe e o seu pai.
Isabel Abreu, por sua vez, surge com uma interpretação em que explora muito pouco a intensidade da personagem, o seu lado mais emocional, apresentando uma empregada muito certinha, em que percebemos claramente que poderia ter existido uma maior libertação de sensações e sentimentos, mesmo contribuindo da mesma forma para a imagem de criada resignada, mas em que fossem mais transparentes a sua dor e a sua moral. O grupo de actores que aparece no início e a meio da peça é um elemento destabilizador da qualidade que se sente ao nível da interpretação.
Censurada na época, esta é uma peça que hoje estimula uma história intimista, onde interessa sobretudo o questionamento individual do conflito, da sedução pela sedução, dos ódios e ciúmes que se manifestam no confronto com o outro, como jogos de poder e jogos de atribuição de culpa.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (15-05-2009)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A revolução do cinema Japonês


Nova vaga dos anos 60
Ciclo de cinema “Eros + Revolta”

“Eros + Revolta, O novo cinema japonês dos anos 60” é o novo ciclo de cinema programado pela Culturgest, a ter início na próxima 3ª feira, dia 12 de Maio, comissariado por Augusto M. Seabra.

Nos novos cinemas dos anos 60, os japoneses, pelo menos os de maior relevo tiveram uma atitude de mudança, muito diferente daquilo que acontecia noutras partes do mundo. O sistema de estúdios em que se fundara o cinema clássico japonês, de Mizoguchi, Ozu ou Naruse, ou a geração humanista do pós-guerra, a de um Kurosawa, fez com que se estreassem realizadores, exactamente pelas normas diferenciadas desse sistema.
Naquela altura, ao mesmo tempo que se discutia com enormes manifestações de rua a renovação do tratado de defesa nipo-americano, o cinema japonês sofreu uma revolução. Chamaram-lhe «“Shochiku Nabero Bagu”, compósito singular porque a Shochiku era (e é) uma das grandes empresas cinematográficas japonesas e “Nabero Bagu” é a transcrição fonética da pronúncia japonesa de “Nouvelle Vague”.»
Os estúdios japoneses queriam fazer filmes para um público jovem, e foi isso que fizeram. A ruptura foi quase imediata, apenas Seijun Suzuki, de uma geração mais velha, permaneceu mais alguns anos no sistema, no seio do cinema erótico “pinku eiga” e no “Nikkatsu Action”, de um modo profundamente original.
Neste ciclo apresentam-se filmes de todos os autores maiores, em termos de ficção, com destaque justificado para Oshima mas também para o génio iconoclasta de Suzuki (autor que Quentin Tarantino amplamente “citou” em Kill Bill).
Nagisa Oshima abre o ciclo, no dia 12, com “Taiyo no hakaba” (O Enterro do Sol) e “Nihon no yonu tokiri” (Noite de Nevoeiro no Japão), dois filmes de 1960, produzidos pela Sochiku. O segundo destes filmes, em que critica a esquerda tradicional e os movimentos estudantis, foi retirado da circulação pela produtora, uma semana depois de ter estreado, no seguimento do assassinato de um líder político socialista. Oshima rompe com a Sochiku e forma a sua própria produtora independente, Sozosha, para quem realizou os dois outros filmes apresentados neste ciclo, a 13 e a 17 de Maio, respectivamente, “Nihon shunka ko (“Sobre as Canções Brejeiras Japonesas”) e Koshikei, (“O Enforcamento”), a sua primeira obra a ser largamente difundida no Ocidente. Em 1976 conquista o Ocidente com “O Império dos Sentidos”.

Yoshishige Yoshida ingressou, como Oshima, nos estúdios Soshiku, e foi o segundo realizador a quem a produtora deu oportunidade para realizar um filme (Oshima foi o primeiro). “Akitsu Onsen” (“As Termas de Akitsu”), projectado neste ciclo, no dia 13, foi o seu quarto filme para a Soshiku, e teve bastante sucesso. Em 1964 abandona o estúdio, depois da produtora ter retirado de circulação os últimos filmes que lhe produziu, e forma a sua própria companhia independente. Realizou, entre 1965 e 1973, seis obras que foram distribuídas pelos grandes estúdios japoneses, entre os quais “Eros + Gyakusatsu” (“Eros+Massacre”), projectado no dia 17.
Na quinta-feira, dia 14, serão projectados dois filmes de Shohei Imamura: “Nippon konchuki” (A Mulher-Insecto) e “Akai Satsui” (Intenção de Matar / Desejo Profano), os últimos filmes que realizou para a Nikkatsu e que firmaram o seu prestígio como um realizador com uma personalidade única e uma das figuras de proa do “Nova Vaga” do cinema japonês.
Em 1969, depois de ter filmado mais 11 produções, Koji Wakamatsu realiza” Yuke yuke nidome no shojo” (Go, Go, second time virgin), que podemos ver no dia 15, filmado no telhado da sua produtora, que já foi considerado um dos filmes “mais cruelmente belos do cinema japonês”. Wakamatsu é muito mais do que um realizador de pink films, que vive à margem dos mercados. É um cineasta radical, político, e extremamente inovador.
Toshio Matsumoto terá também um filme seu projectado no dia 15: “Bara no Soretsu” (O Funeral das Rosas), a sua primeira longa-metragem de ficção. «O seu propósito criativo “era perturbar o esquema perceptivo de um mundo dual que divide factos e ficção, homens e mulheres, objectivo e subjectivo, mental e físico, sinceridade e simulação, tragédia e comédia”.»
O dia 16 é dedicado a Seijun Suzuki. Durante os doze anos que trabalhou para a Nikkatsu realizou perto de 40 filmes de série B, entre os quais os três que poderão ser vistos neste ciclo. A pouco e pouco ia transmitindo aos seus filmes um estilo cada vez mais pessoal, progressivamente marcado “por um humor absurdo, uma realização surrealista e experimentações visuais desconcertantes”. “Tokyo nagaremono” (O Vagabundo de Tóquio) é um dos expoentes dessa sua fase. Além deste filme serão projectados “Nikutai no mon” (A Porta da Carne) e “Kenka erejii” (Elegia da Luta).
Masahiro Shinoda será representado com o filme “Shinju tem no Amijima” (Duplo Suicídio em Amijima), projectado no último dia deste ciclo. Baseado numa peça de teatro de marionetas do séc. XVIII, com banda sonora de Toru Takemitsu, que também colaborou no argumento, é considerado como uma das suas obras-primas.
Os filmes são legendados em inglês, excepto “O Enforcamento” que será legendado em português. Os bilhetes têm o preço único de 3,5 euros.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado Jornal Semanário (08-05-2009)

"Sombreros", uma viagem ao cinema


Uma experiência no limite da queda

“Sombreros” é um espectáculo de dança assinado por Philippe Decouflé, director da companhia DCA. Uma viagem pelo universo deste coreógrafo e uma homenagem ao cinema mudo. Dança do desequilíbrio, no limite da queda, na repetição cómica do erro. Dias 15 e 16 no Centro Cultural de Belém.


Esta não é uma obra narrativa, mas conta a viagem de François e Françoise numa viagem ao México. O título do espectáculo vem dos chapéus típicos daquele país, mas é também um jogo com a expressão da língua francesa "sombre héros" que em português se pode traduzir como “herói das sombras". Esta alusão vem do jogo de imagens, de luz e sombras que tanto recorda o cinema expressionista.
Este é o universo de Philippe Decouflé, bailarino e coreógrafo parisiense, que quando era pequeno queria ser desenhador de BD. A verdade é que o desenho está várias vezes presente no início do processo de criação, numa forma de desenho de imagens que lhe vão passando pela cabeça. O seu trabalho vem da vontade de trabalhar com formas geométricas simples e da mistura da luz, dos figurinos, dos movimentos. Do trabalho com Merce Cunningham e com Tex Avery ficou-lhe este desejo de movimento, quase delirante, em que procura o desequilíbrio, sempre no limite da queda.
Após uma carreira solitária como bailarino, Philippe Decouflé criou a sua própria companhia. DCA nasceu em 1983, e este universo da BD é representado em vários espectáculos, com um tom humorístico. ”Surprises”, “Fraîcheur limite”, “Soupière de luxe”, “Tranche de cake” são espectáculos que dão a conhecer Decouflé em França e na Europa, e “Codex” é também baseado no desenho, sendo inspirado numa enciclopédia desenhada por um jovem italiano, Luigi Séraphini, nos finais dos anos setenta, cujos animais fantásticos, plantas imaginárias e legumes vivos vão alimentar o imaginário coreográfico de Decouflé.
Em 1993, Decouflé assina “Petites pièces montées” onde ele “reflecte sobre o trabalho fantasmagórico de Georges Méliès” (ilusionista francês) e questiona o espaço interrogando-se “como vou fazer entrar e sair os meus bailarinos pelas pernas, como os vou fazer surgir do chão”. Posteriormente, o imaginário de Decouflé volta-se mais uma vez para as plantas, pássaros e legumes de Codex para criar “Decodex”, 2004, é o ano de “Tricodex”, nova peça criada para os bailarinos do Ballet da Ópera Nacional de Lyon.


O último espectáculo de Philippe Decouflé, “Sombrero”, criado em Outubro de 2006 no Théâtre de Nîmes, andou também em digressão por França, e esteve em residência no Théâtre National de Chaillot em Paris durante os meses de Maio e Junho de 2007. Viaja em digressão também pela Europa (Turim, Madrid em 2006, Londres, Wolfsburg em 2007, e Luxemburgo, Antuérpia em 2008). Em 2008, Philippe Decouflé cria uma nova versão de “Sombrero”: “Sombreros” actualmente em digressão em França e na Europa, assim como “Coeurs Croisés” e “Solo”.
“Sombreros” é um conjunto de quadros cheios de beleza e poesia e com um humor surpreendente que chega mesmo a tocar o absurdo. Era inevitável que o universo do desenho estivesse presente, essa fantasia acidental a partir de jogos de sombras e de luz. A música que Brian Eno compôs especialmente para o espectáculo intensifica a magia desta experiência, que nos faz viajar provavelmente não só pelo México, mas por toda este universo fantasioso que Decouflé tem vindo a criar ao longo dos anos, com a companhia DCA, e em tantos outros trabalhos paralelos, cinematográficos. As esferas cruzam-se, a dança passa para o cinema, o cinema para o palco onde se dança. Movimentos inexplicáveis que nos dão a ideia de estar numa corda-bamba, em permanente equilíbrio, tão perto do desequilíbrio, onde as formas geométricas nos são dadas pelas sombras projectadas, também elas jogando com a palavra “Sombreros” que afinal nos levam mais para um imaginário de desenho, do que para o imaginário das viagens. Este é um espectáculo para ver e ouvir com atenção, porque a música de Brian Eno é provavelmente um dos elementos mais fortes a sentir durante a experiência.


ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (08-05-2009)

"La Danseuse Malade": a libertação do butô



« O corpo é a minha oficina; e o meu ofício, conhecido como dança, é uma tarefa de restauro do humano »
Tatsumi Hijikata

Mais uma vez dança-se. « La Danseuse Malade », de Boris Charmatz, com interpretação dele próprio e Jeanne Balibar. O texto base é de Tatsumi Hijikata, fundador do butô, mas este espectáculo não é butô nem o pretende ser, é acima de tudo experimentação e liberdade de movimentos. 7 e 8 de Maio, pelas 21h30, no Grande Auditório da Culturgest.

Jeanne não é bailarina profissional, Boris não tem experiência de teatro. Ele é bailarino, co-fundador da associação edna em 1992, e já criou um conjunto de peças que fizeram história, continuando a sua actividade enquanto intérprete e improvisador. Hoje é director do Centre chorégraphique national de Rennes et de Bretagne. Livros, filmes, projectos atípicos. Uma predisposição para experimentar. Ela é actriz, primeiro de Comédie-Française, depois de cinema de autor. A partir de 2003, também cantora. Ela gosta de experimentar.
O encontro entre Jeanne Balibar e Boris Charmatz dá-se em 2005 no âmbito do projecto en Micronésie de Pierre Alféri. Os dois pegam num texto de Tatsumi Hijikata. Bailarino e coreógrafo japonês, Tatsumi Hijikata, é considerado o pai do butô (dança das trevas), estilo de dança japonesa. Quando estreia o seu primeiro trabalho dentro deste género em 1959, Kinjiki (Forbidden Colours), o sentimento de afronta que se apodera do público no final da peça é tão intenso que resulta na expulsão de Hijikata do Festival. O seu estilo acaba por se caracterizar como uma reacção contra a dança moderna no Japão, que Hijikata sentia que se demonstrava como superficial e colada ao Ocidente. Este sentimento evidencia-se pela sua resistência ao modernismo – Hijikata vai explorar a fraqueza ao invés da força, preferindo a retracção à expansão. Inspira-se, também, na literatura francesa e no surrealismo, nomeadamente no erotismo, na violência e nos tabus da sociedade moderna.
Charmatz avança “Não sei se gosto do Hijikata”, “ (…) eu não sei se sou capaz de gostar de Hijikata : ele parece sujo, morto, impotente, virgem e obsceno”, mas avança para essa experimentação, ao lado de Janne. Acredita na vontade de transmissão dos seus escritos, que têm em si mesmo a capacidade de movimento da dança e butô. O trabalho que desenvolve é por baixo e ao lado do butô, não é uma reinvenção desta arte. Não é na verdade uma encenação, é antes uma libertação desses mesmos escritos, onde já encontramos a miséria, a lama, a deformidade. É experimentação entre um bailarino que não tem experiência de teatro e uma actriz que não é bailarina. Existe um trabalho sobre fragmentos, uma tentativa de se libertar da tradição da transmissão da dança através do corpo a corpo. No início existe a penumbra, eles estão loucos, gritam, saltam, arrancam o chão. « Quando os faróis da carrinha iluminam o palco, é como se uma repentina lucidez tomasse conta de ambos. Jeanne começa literalmente a despejar o texto para cima do público quando entra na carrinha. Boris desapareceu de cena. Passado algum tempo a carrinha arranca e começa a andar em círculos. A dado momento, percebe-se que transporta Boris (como uma carcaça), com os seus arranques, recuos e embalos. Há ainda um ataque de um cão – animal esgalgado, apedrejado pela miudagem, tripas de fora – e tudo acaba com Jeanne, cara branca e vestida de negro, a dançar ao som da música de Boris. Como refere Gérard Mayen, “Todos estes elementos deverão permitir aos artistas colocarem-se na sua relação com o texto. Mais do que um dueto entre Boris Charmatz e Jeanne Balibar, haveria um trio com Hijikata, através das suas palavras, que fazem estar junto mas não juntam; que reúnem no limite, no tormento, na dilaceração.” »
Dança e obscuro estão sempre presentes. Encontram-se, tal como Jeanne e Boris num dueto onde interagem várias artes.




“ (…) Calcorreando meticulosamente Tóquio – onde não está forçosamente extinta esta geração que com as mãos concebeu os olhos – cheguei aos materiais. Que só tive depois que juntar no meio de uma juventude ocupada aqui a roçar-se num atelier de galvanização, acocorada ali numa garagem. Olho para as mãos. Liberta-se delas um movimento de partículas mal desbastadas. A coluna vertebral inclina-se ligeiramente para a frente. Uma dança desce-lhe pela ladeira. Para um olhar infeliz pode-se mudar de gelatina. Cabeças ardentes. A vingança reprimida de um mamilo baixou um pouco a cabeça; é preciso que o material seja antes de mais um amante. Aproximo-me. O odor estabelece entre mim e os rapazes um equilíbrio quase ascético; de modo geral, todos estes corpos excessivamente esticados, como as varetas de um guarda-chuva que criam uma barreira ao que cai, todos esses corpos enviesados, quebradiços, insensibilizados pelo sofrimento, dão de muitas maneiras prioridade a linhas quase decalcadas dos seus vinte anos, em vez e no lugar de todas as figuras sedutoras. Na imensa Tóquio há corpos a morrer.”

Tatsumi Hijikata

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (30-04-2009)