segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Namorar e dançar ao som de Seu Jorge

O Carnaval do Campo Pequeno
Concerto em Lisboa


Seu Jorge esteve em Lisboa no passado dia 9, para um concerto no Campo Pequeno, trazendo o álbum “América Brasil” e apenas um novo tema, mas muita festa, consciência social e carnaval.

Seu Jorge entrou em palco meio desconexo com o público, e até com a banda. O espectáculo começou com “América do Norte”, “Samba Rock”, “Trabalhador Brasileiro”, “Chega no Suingue” e “Carolina”. Consigo estavam 14 músicos, que proporcionavam acompanhamento nas percussões, trompetes, saxofones, violinos e harmónicas, mas o concerto pareceu levar algum tempo a entrar no ritmo certo, até porque houve dois momentos de quebra, apesar do romantismo inegável de um deles.
Seu Jorge serviu de “santo casamenteiro”, quando chamou ao palco um fã que lhe tinha enviado um e-mail e que pediu em casamento uma rapariga chamada Ana. Juntos beberam champanhe, com Seu Jorge, e perante uma plateia que aplaudia o gesto. Seguiu-se “Seu Olhar”, em jeito de celebração e logo depois foi a vez do trio Preto, um trio de percussão, que para quem já tinha visto o concerto do Coliseu era algo repetido e que não ajudou a entrar na engrenagem. Seu Jorge conectou com o universo e com o público quando entrou em palco para tocar só com o seu violão, na fase mais intimista do espectáculo, as versões de David Bowie de “Life on Mars” e “Rebel Rebel”, seguidos de “Zé do Caroço” de Leci Brandão. O momento alto do concerto foi quando Seu Jorge se entregou ao discurso que estará certamente mais próximo da sua verdade, expressando as suas preocupações sociais, recitando “Nego Drama”, dos Racionais MC’s.
A banda voltou a entrar para continuar com “É isso aí” e ainda “Pessoal Particular”, a canção nova que já está a passar nas rádios brasileiras, sob a declaração prévia do músico: “É bom namorar”. Seu Jorge acabou por se soltar e fazer a plateia dançar, tendo passado pelos temas “Mina do Condomínio”, “Mangueira”, o tema “A Namorada”, de Carlinhos Brown.
No primeiro encore foi possível ouvir “Burguesinha”, “Mania de Peitão”, Chatterton, “Sossego” de Tim Maia e São Gonça. No segundo encore a festa estava feita e Seu Jorge lançou o carnaval em Lisboa, com um medley em que se dançou uma série de marchas de carnaval, como “Mamãe eu quero” e “Cachaça”.
O músico brasileiro veio para um concerto em que as novidades foram bastante reduzidas, mas marcou pontos com a sua capacidade de fazer o público relaxar, dançar e namorar.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (16-10-2009)

A mudança pela verdade

Ifigénia na Táurida
Teatro da Cornucópia









“Ifigénia na Táurida” é um texto de Goethe, de 1787, com recriação poética de Frederico Lourenço, que serviu de abertura da temporada 2009/2010 do Teatro da Cornucópia. Com encenação de Luís Miguel Cintra e Beatriz Batarda como protagonista, este é um espectáculo que vive de um grande texto e da intensidade do trabalho da actriz.

O Teatro da Cornucópia tem esta imagem de associação a grandes textos que marcaram a história do teatro de uma forma geral. O teatro alemão do Romantismo e do pré-Romantismo já tinha sido, aliás, abordado pela companhia, pela sua importância para a História da Cultura Ocidental. Depois da encenação da recriação de “Don Carlos” de Schiller, contemporâneo de Goethe, assinada por Frederico Lourenço, o próprio parte para a recriação da “Ifigénia”.
Este é um texto que data do final do século XVIII, um período marcado por grandes transformações políticas e culturais no continente europeu, em que Goethe ressuscita da cultura grega da Antiguidade a história de Ifigénia. E esta transformação é bem presente no texto, em que se apresenta um caminho até à revelação da natureza humana, que é a revelação de cada indivíduo a si próprio. O trajecto de mudança só é possível através da verdade, amor à verdade.
Ifigénia (Beatriz Batarda) é filha de Agamémnon e Clitemnestra. O pai queria oferecê-la a um sacríficio, mas a deusa Diana salvou-a da morte e a partir daí ela passou a viver agradecida, como sacerdotisa de Diana, tendo sido trazida para a Táurida, onde viveu longos anos. O rei Toas (Luís Miguel Cintra) tem uma profunda admiração pela jovem, que o vê como um pai, com quem mantém uma relação de subjugação, à semelhança do que acontece com Diana.
Este espectáculo conta-nos o dia em que o seu irmão Orestes (Paulo Moura Lopes), perseguido pelas Fúrias, depois de vingar a morte do pai assassinado pela mãe, chega com o seu amigo Pílades (Vítor de Andrade) a essa terra de bárbaros. O rei Toas pretende que os estrangeiros sejam mortos e sacrificados por Ifigénia, que entretanto percebe que tem diante de si o irmão. Entra em confronto consigo própria, por perceber que aquele é o seu irmão, e que a sua ânsia de voltar a casa e ao reencontro com a família é possível, mas para isso terá de desobedecer ao rei e ainda de deixar a sua posição de agradecimento a Diana enquanto sua sacerdotisa. Orestes quer resgatar a irmã e regressar à Grécia para limpar a sua geração da maldição divina.
A peça revela-nos atitudes quase ilógicas, contrárias à razão, em detrimento da emoção e da verdade. Surgem questões éticas e morais, que esse reencontro provoca. Ifigénia quer voltar a casa, mas terá de encontrar uma forma de o fazer sem perder tudo aquilo que construiu em termos de relacionamento humano, e acima de tudo sem ir contra a sua verdade. Ela encara o rei como um pai e o regresso a casa, não abarcando as suas ordens e de o abandonar vai contra a sua verdade. Ela precisa do seu consentimento, para se libertar. Ifigénia é a personagem que representa a verdade, o questionamento, a libertação e Beatriz Batarda coloca muita emotividade em palco, fazendo com que a verdade da personagem passe a ser a sua verdade, enquanto a representa.
Com a sua revisão do mito antigo, Goethe questiona em versos belíssimos o conceito de humanidade, a relação dos homens com os deuses, a tensão entre a ideia de destino e a liberdade, a condição das mulheres, e a própria noção de soberania política. A peça coloca o homem face a um mundo de mudança, onde a transformação só é possível a partir da transformação das consciências individuais. Coloca-nos questões, é um texto que nos faz reflectir.
A música que se ouve ao longo do espectáculo é a peça integral para violoncelo solo deHans Werner Henze, Sérénade (1949), interpretada por Emmanuelle Bertrand, que dá ao espectáculo uma energia de tensão bastante adequada.
Com simplicidade e muita elegância, sempre com soluções que ajudam o trabalho de actor, Cristina Reis apresenta um cenário, cuja assinatura é já uma imagem de marca do Teatro, e que se por um lado nos permite reconhecer a qualidade da assinatura, por outro nos retira o efeito surpresa.
Estreado a 24 de Setembro, o espectáculo faz carreira até ao próximo dia 1 de Novembro, no Teatro do Bairro Alto.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (16-10-2009)


Créditos Imagem: L. Santos

Samba: porte estandarte brasileiro

O regresso de Seu Jorge
“América Brasil” ao vivo



Seu Jorge está de volta à Europa, está de volta a Portugal. Primeiro Lisboa, depois Porto, dias 9 e 10 de Setembro, respectivamente. Os bilhetes custam entre 22 e 33 euros, mas vale mesmo a pena.

Estava previsto um único concerto do Seu Jorge em Lisboa, mas a grande procura de bilhetes levaram a que a Mandrake agendasse uma data para o Porto. Assim, no dia 10 de Outubro, o Coliseu do Porto recebe o artista que já em 2007 levou a organização a marcar uma Casa da Música extra. Nesse ano, também em Lisboa, além do concerto no Coliseu, no dia seguinte se fez um pequeno show, mais intimista, no cinema Mundial. Um dos momentos mais privilegiados dos últimos tempos, no que diz respeito a concertos de música brasileira em Portugal.
O cantor brasileiro que “vendia bala no trem” ultrapassou as fronteiras brasileiras e conquistou o Mundo com o samba do século XXI. Nasceu no início dos anos 70, e além de músico é actor, tendo começado por um musical, a convite de Paulo Moura, e desde então, como actor tem participado numa série de filmes, de onde se destacam “Cidade de Deus” (2002) e “The Life Aquatic with Steve Zissou” (2004). O filme mais recente em que podemos encontrar Seu Jorge é “Beyond Ipanema”.
A sua carreira musical começou com a participação na banda Farofa Carioca, que lançou o primeiro álbum em 1998, uma mistura de ritmos negros com brasileiros. A partir daí participou em muitos projectos, com Ana Carolina, Marcelo D2 e Olivia Byington, entre outros. A solo, lançou “Samba Esporte Fino” (2001), “Cru” (2004), “The Life Aquatic with Steve Zissou, Studio Sessions” (2005) e depois “América Brasil” (2007). Agora saiu “América Brasil ao Vivo”, em CD e DVD. O disco, com o qual arrecadou o Grammy Latino na categoria MPB, e que serviu também o concerto em 2007, quando era ainda fresco, servirá de base aos espectáculos agendados. Esse é pelo menos o ponto de partida do espectáculo.
Recentemente, o músico, actuou no mítico Hollywood Bowl, em Los Angeles, palco guardado para os melhores artistas de sempre, e agora dá um grande concerto no Campo Pequeno, em Lisboa, seguindo depois para o Porto. Seu Jorge é autor de sucessos como «Ana Carolina», «Burguesinha», e intérprete das famosas versões em português dos temas de David Bowie para o filme «Um Peixe Fora de Água» de Wes Anderson. Desta vez traz ainda mais samba, a sua essência. Quando pensamos em samba, pensamos no Brasil, mas Seu Jorge é mais do que isso. Ele tem o sabor do Brasil, mas incorpora o funk dos anos 70, o soul e ainda consegue integrar uma série de instrumentos que normalmente não se associam a este estilo de música, como o violino ou a harpa.
Quando o “negrão”, como lhe chama Ana Carolina, sobe a palco, o ritmo e a alegria instalam-se, normalmente envolvidos por um discurso muito consciente e atento à humanidade. Em palco, monta-se o estandarte brasileiro e o estilo de “Mané Galinha” (“Cidade de Deus”) deambula pelo palco, passando por uma série de sons e histórias que vão surpreendendo a cada momento. Seu Jorge é uma mistura explosiva entre a alegria do samba brasileiro e uma consciência apurada perante aquilo que acontece à sua volta. Talvez pelas suas origens, da favela brasileira, talvez por ter conseguido crescer no meio musical sem perder a sua verdade. Ele é samba-rock-funk-reggae, mas como “América Brasil” é um disco mais dançável, a tendência é que todo o mundo se atire para a piscina e fique toda a noite a dançar.
Seu Jorge é transatlântico, mistura a sua origem com aquilo que foi apreendendo do mundo, e vai-nos deliciando com músicas que têm as suas razões, as suas histórias, as suas dedicatórias, e que normalmente partilha, mostrando uma disponibilidade para falar sobre si, e sobre aquilo que sente. Dá-se em palco, algo que começa a ser raro nos artistas. Os cantautores brasileiros afinal não são todos iguais. Seu Jorge consegue viajar pelas sonoridades populares do Brasil, mas de uma forma relevante, consistente. Ambiente de baile sim, mas com o balanço da sua voz grave. Desta vez traz a versão ao vivo de “América Brasil”, e devem ainda existir surpresas, ou não fosse ele um criativo cheio de samba, mas também com muita capacidade de leitura do mundo e de si mesmo.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (09-10-2009)

Linguagem orgânica em palco


"A Orelha de Deus"
O processo de Jenny Schwartz


Nas notas iniciais ao texto “A Orelha de Deus” (God’s Ear, de Jenny Schwartz), podemos ler: “Espera-se que o público consiga apreender significados através da acumulação da linguagem. Portanto, regra geral e a não ser que o oposto seja especificamente exigido, os actores devem falar depressa e não fazer pausas para pensar entre as falas.” Foi assim que aconteceu, mas podia ter sido ainda mais ritmado, mais ainda.

“A Orelha de Deus” é um espectáculo que se vê de uma assentada só. O processo de escrita, provavelmente, influenciou o ritmo e as histórias que são apresentadas como produto final. No passado sábado, depois do espectáculo, e numa conversa aberta ao público, Jenny explicou: “quando me escrevo para sentar, recomeço sempre do início”. Descreve-o como um processo emocional, muito orgânico, em que as histórias e a linguagem vão surgindo, e quando surge uma ideia nova, recomeça tudo do início e adapta. Quando começou a escrever este texto, Jenny tinha a conversa inicial de Ted e Mel, e a vontade de construir algo a partir daqui, mas o facto de eles terem perdido um filho, só surgiu mais tarde, num dia, ao escrever a frase: “Porque é que toda a gente que conheces perdeu um filho?”, e decidiu reconstruir tudo. Foi assim com esta frase, foi assim com o aparecimento do GI Joe, foi assim com a hospedeira travesti que um dia decidiu colocar na história e foi escrevendo, reescrevendo, sempre com um gosto muito próprio e presente por jogos de palavras, transformando o discurso numa melodia que tem um ritmo inabalável quando o lemos. As suas influências vêm das peças da Grécia Antiga, em que se focou nos seus estudos, onde foi buscar o suficiente para uma escrita com ritmos próprios da poesia e elementos sobrenaturais.
Estreada em Nova Iorque no Vineyard Theatre (off-Broadway), “A Orelha de Deus” chegou a Portugal pela mão de Francisco Frazão, programador de teatro da Culturgest, tendo sido posteriormente apresentada à encenadora Cristina Carvalhal e só mais tarde ao elenco que dirigiu (Cucha Carvalheiro, Diana Sá, Emílio Gomes, Luísa Cruz, Manuel Wiborg, Pedro Carmo e Sandra Faleiro). A primeira reacção que a encenadora teve foi: “Como é que isto se faz?”, mas acabou por avançar, apaixonada pelo texto, que, aliás, devido a uma tradução microscópica e brilhante, assinada por Rogério Casanova, com a adaptação de todos os jogos de palavras e expressões idiomáticas, mas sem o descontextualizar dos EUA, permitiu o ritmo existente em palco.
A peça conta-nos um drama, é esse o terreno que pisam: uma mulher frustrada, um marido assustado e uma criança que reclama atenção. Todos em carência emocional. Ao mesmo tempo vai-se construindo um universo que não é paralelo, porque se entrecruza com aquele, mais táctil. Neste surgem personagens como o GI Joe ou a fada dos dentes. Este universo permite que num só palco se vá criando um mundo inteiro pela sugestão das personagens e da palavra. O tempo também não existe, existem vários tempos, que às vezes se misturam e às vezes são ao mesmo tempo muitos tempos. O espaço também é muitos espaços, em simultâneo. O cenário que Ana Limpinho e Maria João Castelo construíram para o Pequeno Auditório da Culturgest permitiu que as cenas ganhassem alguma espacialidade, mas o discurso acaba por a quebrar, mais cedo ou mais tarde.
As canções, cuja composição foi da responsabilidade de Sérgio Delgado, vêm trazer imagens de sensualidade e comicidade, serviriam de interlúdios segundo indicações do texto, mas aqui passam a ser partes essenciais do espectáculo.
Em palco, o texto acaba por perder ritmo, talvez pelas movimentações, que poderiam ser mais limitadas dando ainda mais peso à palavra, e mais rápido, que é como nos apetece ouvir depois de o ler. Uma experiência teatral inventiva, porque nos permite viver uma torrente de acontecimentos, de perguntas e respostas. “Eu tenho uma pergunta”, “Eu tenho uma resposta”.
“A Orelha de Deus” será representada no Teatro Vila Flor, em Guimarães (2 Outubro) e no Teatro Viriato (23 e 24 de Outubro).


ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (02-10-2009)


A fronteira entre o público e o criador

Circular Festival de Artes Performativas
“Uma peça encomendada” em Vila do Conde





Às vezes os últimos são mesmo os primeiros. A 5ª edição do Circular Festival de Artes Performativas encerra este fim-de-semana com a estreia absoluta do novo trabalho de Joclécio Azevedo, "Uma peça encomendada". O espectáculo foi construído a partir de contribuições de 19 pessoas que, sendo ou não potenciais espectadores da obra final, participaram na sua construção assumindo-a como uma “encomenda” aberta e personalizável. A peça estreia hoje, às 19h, no Auditório Municipal de Vila do Conde, e será novamente apresentada a 26 de Setembro, no mesmo local.

Joclécio Azevedo nasceu no Brasil em 1969. Vive e trabalha no Porto desde 1990. Participou, como intérprete, em projectos de diversos criadores, entre os quais, Isabel Barros, Né Barros, Ana Figueira, Joana Providência, André Guedes, Simone Forti, Gary Stevens, Ronit Ziv, Jean-Marc Heim, Peter Bebjak/Juraj Korec e Tino Seghal. A partir de 1999, e a par da sua actividade como performer, começa a apresentar simultaneamente o seu trabalho coreográfico, tendo participado em projectos de investigação, residências artísticas e projectos educacionais em diversos países, como Portugal, França, Tunísia, Alemanha, Espanha, Bélgica, Suíça, Escócia, Inglaterra, Eslováquia e Índia. A partir de 2003 desenvolveu diversas colaborações com o coreógrafo suíço Jean-Marc Heim, em Lausanne, tendo sido intérprete no espectáculo “Va et Vient” (2003 – Prémio da crítica suíça de dança e coreografia), intérprete e dramaturgo em “Creatura” (2005), e dramaturgo em “Flagrant Delhi” (2008). Actualmente estão a preparar um novo projecto que deve estrear em 2010. “Estratégias de colisão” (2006), “Sans titre” (2006), “Inventário” (2007) e “Open Scores” (2009) são alguns dos seus trabalhos mais recentes, e é um dos membros fundadores e actual director artístico do Núcleo de Experimentação Coreográfica.
Esta é a segunda vez que Joclécio Azevedo participa no Circular Festival de Artes Performativas, depois de em 2005 ter apresentado no Festival o trabalho "Em Resumo".
“Uma peça encomendada” é o resultado de uma interpretação por parte do artista daquilo que absorveu como desejos e preocupações dos espectadores que entraram neste projecto. Juntaram-se em residência e tentaram perceber e desconstruir a fronteira entre público e criador. É no fundo, resultado de uma reflexão sobre a relevância da interacção entre ambas as partes. O facto de não se poder prever que forma terá o objecto artístico final induz a que se criem leituras. Este criador decidiu reflectir sobre as consequências da utilização de práticas que possam amplificar este espaço de interacção entre a criação artística e a sua recepção.
Perguntas são lançadas neste projecto, e espera-se que “Uma peça encomendada”, ou responda, ou pelo menos possibilite leituras por parte do público, talvez até respostas: “O que é que muda se os espectadores tiverem a oportunidade de inscreverem o seu imaginário na performance? Que novos temas poderão ser introduzidos? Que vocabulários? Que preocupações? Que desejos particulares? Que imagens? Que energias? Que desafios?”
No dia 26 e após o espectáculo, decorrerá uma conversa com o artista moderada por Magda Henriques.
A 5ª edição do Circular - Festival de Artes Performativas começou no dia 19 e prolonga-se até 26 de Setembro, em Vila do Conde. Até dia 26, e além do trabalho de Joclécio Azevedo, é possível ver "Utopias, Ciborgues e Outras Casas nas Árvores" de Carla Cruz, uma nova criação, também desenvolvida em residência, como o trabalho do coreógrafo que destacamos; "Chinoiserie", recentemente estreado pela companhia de teatro Mala Voadora (a 25 de Setembro, 6ª feira, 21h30, Teatro Municipal de Vila do Conde) e "Vice-Royale. Vain-Royale. Vile-Royale" de Sónia Baptista (26 Setembro, Sábado, 21h30, Auditório Municipal de Vila do Conde).

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (25-09-2009)

A imaginação como meio de reconstrução

“A Orelha de Deus”
Encenação de Cristina Carvalhal


“A Orelha de Deus” é uma peça assinada por Jenny Schwartz, uma jovem dramaturga nova-iorquina. As personagens e os diálogos criam um universo onde a fronteira entre o real e o imaginário é muito ténue, onde não há espaço para espaços, nem tempo para tempos. Com encenação de Cristina Carvalhal, “A Orelha de Deus” será apresentado na Culturgest, de 24 a 30 de Setembro.

Quando se lê o texto de Jenny Schwartz tem-se a sensação de que se está perante um grande texto. Assim aconteceu connosco, com Francisco Frazão (programador de teatro da Culturgest), que convidou Cristina Carvalhal para o encenar, e com a própria Cristina que acabou por aceitar. “Li o texto e gostei muito. O que me atraiu foi o tipo de comunicação que ele pretende, que não é directa, é como se tentasse estabelecer um canal de comunicação com o público que não passa pela via racional. Há momentos em que o discurso faz sentido, mas há outros em que é totalmente desconexo, em que se recorre a frases feitas, a ditos populares, a aliterações, a repetições (…).”, explica-nos.
Nas notas iniciais ao texto, podemos ler: “Espera-se que o público consiga apreender significados através da acumulação da linguagem. Portanto, regra geral e a não ser que o oposto seja especificamente exigido, os actores devem falar depressa e não fazer pausas para pensar entre as falas.” É assim que acontece. Parece que quando o texto começa entramos na cabeça de alguém. Às vezes ossos são ovos e ovos são olhos. Cristina Carvalhal fala da ideia de musical: “A palavra é fundamental, não no sentido da tragédia, mas o exterior da palavra, o significante, a musicalidade, como se todo o texto fosse uma partitura musical.”
Mergulhamos numa história, que é a de um casal que perdeu um filho (morreu afogado enquanto a mãe espalhava creme protector nas costas da filha irrequieta). Eles estão sob um efeito de ruptura, perderam um filho, e com ele a sua identidade. “A célula familiar desfaz-se e parece que estamos a assistir ao seu reconstruir, lentamente, como se tivéssemos dentro de um pesadelo.”
A ideia de pesadelo é-nos dada, não pela história, mas pela estrutura, porque nem sempre encontramos tempo, espaço ou lógica nos acontecimentos. De repente estamos na sala com o casal, a seguir ele está num avião, depois há um bar, uma mulher que parece saída de um videoclip, há a filha e um frasco de xarope antigo, um hospital, uma fada dos dentes e uma hospedeira travesti com uma pistola. Tudo se mistura, tempo e espaço diluem-se. A dor é constante, a espaços volta e instala-se. Os pais ficam presos a um tempo infantil e essa ligação traz um universo quase paralelo. “É o tempo desse filho que existiu e que nunca vai crescer. Funciona como fuga deles próprios, e ao mesmo tempo de onde não conseguem sair, por ser uma marca tão forte, é como um obstáculo que não conseguem ultrapassar.”
As canções interludem e o casal co-habita com o GI Joe e com a fada dos dentes, figuras que supostamente não existem, mas que como diria Murakami, e nas palavras de Cristina Carvalhal, “O que é que é real e o que é que é imaginário? Será que essa fronteira existe? Temos esta mania de dividir as coisas entre reais e imaginárias… O real não existe, somos nós que o forjamos, não é?”


O texto acaba por não ter uma mensagem, mas muitas leituras, permitindo ao público criar a sua própria história. Aqui também se exploram as ligações e a comunicação dentro da família. A filha e a mãe comunicam quase através de um terceiro elemento, a fada dos dentes (no espaço), o pai (no discurso). Também se fala de infidelidade, do quotidiano de um casal e de uma filha carente depois da morte do irmão mais novo. Procuramos um sentido, um final para a história, mas não é claro, nem directo. Cada um viverá esta história à sua maneira. “O texto dirige-se a uma zona mais inconsciente, a comunicação não é directa, funciona por acumulação, por outros processos e motivos, o do riso e o da piedade, no sentido da compaixão. É como um pesadelo que pudéssemos partilhar com o público e de onde saíssem com a sensação acabou, não sabemos quanto tempo teve e tentamos construir a história e encontra as razões para se ter sonhado com aquilo.”
O espectáculo conta com Cucha Carvalheiro, Diana Sá, Emílio Gomes, Luísa Cruz, Manuel Wiborg, Pedro Carmo e Sandra Faleiro. “A Orelha de Deus” estará em cena na Culturgest, em Lisboa (24 a 30 Setembro), no Teatro Vila Flor, em Guimarães (2 Outubro) e no Teatro Viriato (23 e 24 de Outubro).

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (18-09-2009)

Jogos de sedução entre classes


“Menina Júlia” no espaço Negócio
Encenação de Bruno Bravo



Encenada pela segunda vez este ano “Menina Júlia” foi apresentada no Espaço Negócio, sob o olhar de Bruno Bravo, depois de ter subido ao palco do Teatro Dona Maria II, em Maio, encenada por Rui Mendes. O clássico da literatura dramática universal, assinado por August Strindberg, foi interpretado por Ana Brandão, Pedro Giestas e Inês Pereira, entre 7 e 12 de Setembro.

“Menina Júlia” é um texto naturalista, o mais representado de Strindberg. O conflito e a maldade sentidos entre o criado e a menina nobre são explorados, desta vez num cenário escuro, e bem adaptado, onde no fundo do palco encontramos um coro sentado, constituído por pessoas que fazem parte dos palcos e outras que o pisam pela primeira vez, entre os quais uma criança. É a ideia do contemporâneo numa peça de 1888. O facto de ter estreantes, ou pelo menos pessoas menos habituadas a estar em palco dá-nos uma certa ideia de desleixe, apenas existente porque sentimos desconcentração, pessoas que se riem em momentos inoportunos. O olhar da cena perde-se, sem sentido. Se a ideia é ter um coro sempre presente, fica a vontade de que este participe mais, mas no momento certo.
Em cena desenrola-se a história, que parece cada vez mais enrolada. Numa noite de São João, a menina Júlia perdeu a cabeça e entregou-se ao criado. As pessoas podem falar. O pai pode morrer. O criado desresponsabiliza-se, a menina Júlia também. Tentam. Proveniente da nobreza, será ela a sofrer as consequências do acto de loucura. O texto vai, desta forma, explorando as temáticas da luta de classes e da luta de sexos, de uma forma política, mas através de uma história de amor trágica, ou de uma obsessão pelo parecer, pela imagem que os outros fazem deles. Até a cozinheira assume esse medo ao descobrir tudo o que se passou. Há uma honra a manter. Os últimos vão para o céu.
Bruno Bravo explora de forma consistente os conflitos entre classes e sexos, mesmo sendo algo de menor expressão na sociedade actual, ou mais esbatido. A responsabilidade e a culpa também estão muito presentes, através de um trabalho com foco nas relações emocionais. A encenação de Bruno Bravo consegue trazer algo de novo, através do coro, através do seu olhar que nos traz alguma modernidade e que marca pela densidade psicológica das personagens, e que Pedro Giestas consegue alcançar de forma inigualável. A sua representação da frieza e da contenção emocional, própria de alguém que é bruto no seu interior, na sua procura de ascensão ao poder, é equilibrada e forte.
A menina Júlia, aqui interpretada por Ana Brandão, é de alguma forma deslocada, por não se sentir uma comunicação plena com o criado (Pedro Giestas), por não se entregar totalmente à ideia de loucura selvagem que o texto nos pede. Consegue a inocência da fidalga provocadora, a ideia de mulher com medo do desconhecido, mas esperava-se maior choque emotivo no discurso final, onde se toca o tema da responsabilidade individual.
Inês Pereira que interpreta a cozinheira tem uma prestação subtil, como a própria personagem, trazendo-nos os temas do respeito entre classes sociais, o tema do trabalho e da submissão feminina ao homem que escolheu para si.
Revolucionário por natureza, Strindberg explorou neste texto uma estética naturalista. Censurada na época, esta é uma peça que hoje estimula uma história intimista, onde fica sobretudo o questionamento individual do conflito, da sedução pela sedução, dos ódios e ciúmes, dos jogos de poder e de atribuição de culpa, de desresponsabilização, e Bruno Bravo através de uma encenação limpa, consegue deixar espaço para surgir essa clareza.
Este espectáculo surge de um período de residência, na qual os Primeiros Sintomas voltaram a pegar num texto como principal impulsionador da criação, no contexto do trabalho que têm vindo a desenvolver, de reflexão e levantamento de dramaturgias diversas.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (18-09-2009)