segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Linguagem orgânica em palco


"A Orelha de Deus"
O processo de Jenny Schwartz


Nas notas iniciais ao texto “A Orelha de Deus” (God’s Ear, de Jenny Schwartz), podemos ler: “Espera-se que o público consiga apreender significados através da acumulação da linguagem. Portanto, regra geral e a não ser que o oposto seja especificamente exigido, os actores devem falar depressa e não fazer pausas para pensar entre as falas.” Foi assim que aconteceu, mas podia ter sido ainda mais ritmado, mais ainda.

“A Orelha de Deus” é um espectáculo que se vê de uma assentada só. O processo de escrita, provavelmente, influenciou o ritmo e as histórias que são apresentadas como produto final. No passado sábado, depois do espectáculo, e numa conversa aberta ao público, Jenny explicou: “quando me escrevo para sentar, recomeço sempre do início”. Descreve-o como um processo emocional, muito orgânico, em que as histórias e a linguagem vão surgindo, e quando surge uma ideia nova, recomeça tudo do início e adapta. Quando começou a escrever este texto, Jenny tinha a conversa inicial de Ted e Mel, e a vontade de construir algo a partir daqui, mas o facto de eles terem perdido um filho, só surgiu mais tarde, num dia, ao escrever a frase: “Porque é que toda a gente que conheces perdeu um filho?”, e decidiu reconstruir tudo. Foi assim com esta frase, foi assim com o aparecimento do GI Joe, foi assim com a hospedeira travesti que um dia decidiu colocar na história e foi escrevendo, reescrevendo, sempre com um gosto muito próprio e presente por jogos de palavras, transformando o discurso numa melodia que tem um ritmo inabalável quando o lemos. As suas influências vêm das peças da Grécia Antiga, em que se focou nos seus estudos, onde foi buscar o suficiente para uma escrita com ritmos próprios da poesia e elementos sobrenaturais.
Estreada em Nova Iorque no Vineyard Theatre (off-Broadway), “A Orelha de Deus” chegou a Portugal pela mão de Francisco Frazão, programador de teatro da Culturgest, tendo sido posteriormente apresentada à encenadora Cristina Carvalhal e só mais tarde ao elenco que dirigiu (Cucha Carvalheiro, Diana Sá, Emílio Gomes, Luísa Cruz, Manuel Wiborg, Pedro Carmo e Sandra Faleiro). A primeira reacção que a encenadora teve foi: “Como é que isto se faz?”, mas acabou por avançar, apaixonada pelo texto, que, aliás, devido a uma tradução microscópica e brilhante, assinada por Rogério Casanova, com a adaptação de todos os jogos de palavras e expressões idiomáticas, mas sem o descontextualizar dos EUA, permitiu o ritmo existente em palco.
A peça conta-nos um drama, é esse o terreno que pisam: uma mulher frustrada, um marido assustado e uma criança que reclama atenção. Todos em carência emocional. Ao mesmo tempo vai-se construindo um universo que não é paralelo, porque se entrecruza com aquele, mais táctil. Neste surgem personagens como o GI Joe ou a fada dos dentes. Este universo permite que num só palco se vá criando um mundo inteiro pela sugestão das personagens e da palavra. O tempo também não existe, existem vários tempos, que às vezes se misturam e às vezes são ao mesmo tempo muitos tempos. O espaço também é muitos espaços, em simultâneo. O cenário que Ana Limpinho e Maria João Castelo construíram para o Pequeno Auditório da Culturgest permitiu que as cenas ganhassem alguma espacialidade, mas o discurso acaba por a quebrar, mais cedo ou mais tarde.
As canções, cuja composição foi da responsabilidade de Sérgio Delgado, vêm trazer imagens de sensualidade e comicidade, serviriam de interlúdios segundo indicações do texto, mas aqui passam a ser partes essenciais do espectáculo.
Em palco, o texto acaba por perder ritmo, talvez pelas movimentações, que poderiam ser mais limitadas dando ainda mais peso à palavra, e mais rápido, que é como nos apetece ouvir depois de o ler. Uma experiência teatral inventiva, porque nos permite viver uma torrente de acontecimentos, de perguntas e respostas. “Eu tenho uma pergunta”, “Eu tenho uma resposta”.
“A Orelha de Deus” será representada no Teatro Vila Flor, em Guimarães (2 Outubro) e no Teatro Viriato (23 e 24 de Outubro).


ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (02-10-2009)


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