segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Jogos de sedução entre classes


“Menina Júlia” no espaço Negócio
Encenação de Bruno Bravo



Encenada pela segunda vez este ano “Menina Júlia” foi apresentada no Espaço Negócio, sob o olhar de Bruno Bravo, depois de ter subido ao palco do Teatro Dona Maria II, em Maio, encenada por Rui Mendes. O clássico da literatura dramática universal, assinado por August Strindberg, foi interpretado por Ana Brandão, Pedro Giestas e Inês Pereira, entre 7 e 12 de Setembro.

“Menina Júlia” é um texto naturalista, o mais representado de Strindberg. O conflito e a maldade sentidos entre o criado e a menina nobre são explorados, desta vez num cenário escuro, e bem adaptado, onde no fundo do palco encontramos um coro sentado, constituído por pessoas que fazem parte dos palcos e outras que o pisam pela primeira vez, entre os quais uma criança. É a ideia do contemporâneo numa peça de 1888. O facto de ter estreantes, ou pelo menos pessoas menos habituadas a estar em palco dá-nos uma certa ideia de desleixe, apenas existente porque sentimos desconcentração, pessoas que se riem em momentos inoportunos. O olhar da cena perde-se, sem sentido. Se a ideia é ter um coro sempre presente, fica a vontade de que este participe mais, mas no momento certo.
Em cena desenrola-se a história, que parece cada vez mais enrolada. Numa noite de São João, a menina Júlia perdeu a cabeça e entregou-se ao criado. As pessoas podem falar. O pai pode morrer. O criado desresponsabiliza-se, a menina Júlia também. Tentam. Proveniente da nobreza, será ela a sofrer as consequências do acto de loucura. O texto vai, desta forma, explorando as temáticas da luta de classes e da luta de sexos, de uma forma política, mas através de uma história de amor trágica, ou de uma obsessão pelo parecer, pela imagem que os outros fazem deles. Até a cozinheira assume esse medo ao descobrir tudo o que se passou. Há uma honra a manter. Os últimos vão para o céu.
Bruno Bravo explora de forma consistente os conflitos entre classes e sexos, mesmo sendo algo de menor expressão na sociedade actual, ou mais esbatido. A responsabilidade e a culpa também estão muito presentes, através de um trabalho com foco nas relações emocionais. A encenação de Bruno Bravo consegue trazer algo de novo, através do coro, através do seu olhar que nos traz alguma modernidade e que marca pela densidade psicológica das personagens, e que Pedro Giestas consegue alcançar de forma inigualável. A sua representação da frieza e da contenção emocional, própria de alguém que é bruto no seu interior, na sua procura de ascensão ao poder, é equilibrada e forte.
A menina Júlia, aqui interpretada por Ana Brandão, é de alguma forma deslocada, por não se sentir uma comunicação plena com o criado (Pedro Giestas), por não se entregar totalmente à ideia de loucura selvagem que o texto nos pede. Consegue a inocência da fidalga provocadora, a ideia de mulher com medo do desconhecido, mas esperava-se maior choque emotivo no discurso final, onde se toca o tema da responsabilidade individual.
Inês Pereira que interpreta a cozinheira tem uma prestação subtil, como a própria personagem, trazendo-nos os temas do respeito entre classes sociais, o tema do trabalho e da submissão feminina ao homem que escolheu para si.
Revolucionário por natureza, Strindberg explorou neste texto uma estética naturalista. Censurada na época, esta é uma peça que hoje estimula uma história intimista, onde fica sobretudo o questionamento individual do conflito, da sedução pela sedução, dos ódios e ciúmes, dos jogos de poder e de atribuição de culpa, de desresponsabilização, e Bruno Bravo através de uma encenação limpa, consegue deixar espaço para surgir essa clareza.
Este espectáculo surge de um período de residência, na qual os Primeiros Sintomas voltaram a pegar num texto como principal impulsionador da criação, no contexto do trabalho que têm vindo a desenvolver, de reflexão e levantamento de dramaturgias diversas.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (18-09-2009)

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