Encenação de Bruno Bravo
Encenada pela segunda vez este ano “Menina Júlia” foi apresentada no Espaço Negócio, sob o olhar de Bruno Bravo, depois de ter subido ao palco do Teatro Dona Maria II, em Maio, encenada por Rui Mendes. O clássico da literatura dramática universal, assinado por August Strindberg, foi interpretado por Ana Brandão, Pedro Giestas e Inês Pereira, entre 7 e 12 de Setembro.
“Menina Júlia” é um texto naturalista, o mais representado de Strindberg. O conflito e a maldade sentidos entre o criado e a menina nobre são explorados, desta vez num cenário escuro, e bem adaptado, onde no fundo do palco encontramos um coro sentado, constituído por pessoas que fazem parte dos palcos e outras que o pisam pela primeira vez, entre os quais uma criança. É a ideia do contemporâneo numa peça de 1888. O facto de ter estreantes, ou pelo menos pessoas menos habituadas a estar em palco dá-nos uma certa ideia de desleixe, apenas existente porque sentimos desconcentração, pessoas que se riem em momentos inoportunos. O olhar da cena perde-se, sem sentido. Se a ideia é ter um coro sempre presente, fica a vontade de que este participe mais, mas no momento certo.
Em cena desenrola-se a história, que parece cada vez mais enrolada. Numa noite de São João, a menina Júlia perdeu a cabeça e entregou-se ao criado. As pessoas podem falar. O pai pode morrer. O criado desresponsabiliza-se, a menina Júlia também. Tentam. Proveniente da nobreza, será ela a sofrer as consequências do acto de loucura. O texto vai, desta forma, explorando as temáticas da luta de classes e da luta de sexos, de uma forma política, mas através de uma história de amor trágica, ou de uma obsessão pelo parecer, pela imagem que os outros fazem deles. Até a cozinheira assume esse medo ao descobrir tudo o que se passou. Há uma honra a manter. Os últimos vão para o céu.
Bruno Bravo explora de forma consistente os conflitos entre classes e sexos, mesmo sendo algo de menor expressão na sociedade actual, ou mais esbatido. A responsabilidade e a culpa também estão muito presentes, através de um trabalho com foco nas relações emocionais. A encenação de Bruno Bravo consegue trazer algo de novo, através do coro, através do seu olhar que nos traz alguma modernidade e que marca pela densidade psicológica das personagens, e que Pedro Giestas consegue alcançar de forma inigualável. A sua representação da frieza e da contenção emocional, própria de alguém que é bruto no seu interior, na sua procura de ascensão ao poder, é equilibrada e forte.
A menina Júlia, aqui interpretada por Ana Brandão, é de alguma forma deslocada, por não se sentir uma comunicação plena com o criado (Pedro Giestas), por não se entregar totalmente à ideia de loucura selvagem que o texto nos pede. Consegue a inocência da fidalga provocadora, a ideia de mulher com medo do desconhecido, mas esperava-se maior choque emotivo no discurso final, onde se toca o tema da responsabilidade individual.
Inês Pereira que interpreta a cozinheira tem uma prestação subtil, como a própria personagem, trazendo-nos os temas do respeito entre classes sociais, o tema do trabalho e da submissão feminina ao homem que escolheu para si.
Revolucionário por natureza, Strindberg explorou neste texto uma estética naturalista. Censurada na época, esta é uma peça que hoje estimula uma história intimista, onde fica sobretudo o questionamento individual do conflito, da sedução pela sedução, dos ódios e ciúmes, dos jogos de poder e de atribuição de culpa, de desresponsabilização, e Bruno Bravo através de uma encenação limpa, consegue deixar espaço para surgir essa clareza.
Este espectáculo surge de um período de residência, na qual os Primeiros Sintomas voltaram a pegar num texto como principal impulsionador da criação, no contexto do trabalho que têm vindo a desenvolver, de reflexão e levantamento de dramaturgias diversas.
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