segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A imaginação como meio de reconstrução

“A Orelha de Deus”
Encenação de Cristina Carvalhal


“A Orelha de Deus” é uma peça assinada por Jenny Schwartz, uma jovem dramaturga nova-iorquina. As personagens e os diálogos criam um universo onde a fronteira entre o real e o imaginário é muito ténue, onde não há espaço para espaços, nem tempo para tempos. Com encenação de Cristina Carvalhal, “A Orelha de Deus” será apresentado na Culturgest, de 24 a 30 de Setembro.

Quando se lê o texto de Jenny Schwartz tem-se a sensação de que se está perante um grande texto. Assim aconteceu connosco, com Francisco Frazão (programador de teatro da Culturgest), que convidou Cristina Carvalhal para o encenar, e com a própria Cristina que acabou por aceitar. “Li o texto e gostei muito. O que me atraiu foi o tipo de comunicação que ele pretende, que não é directa, é como se tentasse estabelecer um canal de comunicação com o público que não passa pela via racional. Há momentos em que o discurso faz sentido, mas há outros em que é totalmente desconexo, em que se recorre a frases feitas, a ditos populares, a aliterações, a repetições (…).”, explica-nos.
Nas notas iniciais ao texto, podemos ler: “Espera-se que o público consiga apreender significados através da acumulação da linguagem. Portanto, regra geral e a não ser que o oposto seja especificamente exigido, os actores devem falar depressa e não fazer pausas para pensar entre as falas.” É assim que acontece. Parece que quando o texto começa entramos na cabeça de alguém. Às vezes ossos são ovos e ovos são olhos. Cristina Carvalhal fala da ideia de musical: “A palavra é fundamental, não no sentido da tragédia, mas o exterior da palavra, o significante, a musicalidade, como se todo o texto fosse uma partitura musical.”
Mergulhamos numa história, que é a de um casal que perdeu um filho (morreu afogado enquanto a mãe espalhava creme protector nas costas da filha irrequieta). Eles estão sob um efeito de ruptura, perderam um filho, e com ele a sua identidade. “A célula familiar desfaz-se e parece que estamos a assistir ao seu reconstruir, lentamente, como se tivéssemos dentro de um pesadelo.”
A ideia de pesadelo é-nos dada, não pela história, mas pela estrutura, porque nem sempre encontramos tempo, espaço ou lógica nos acontecimentos. De repente estamos na sala com o casal, a seguir ele está num avião, depois há um bar, uma mulher que parece saída de um videoclip, há a filha e um frasco de xarope antigo, um hospital, uma fada dos dentes e uma hospedeira travesti com uma pistola. Tudo se mistura, tempo e espaço diluem-se. A dor é constante, a espaços volta e instala-se. Os pais ficam presos a um tempo infantil e essa ligação traz um universo quase paralelo. “É o tempo desse filho que existiu e que nunca vai crescer. Funciona como fuga deles próprios, e ao mesmo tempo de onde não conseguem sair, por ser uma marca tão forte, é como um obstáculo que não conseguem ultrapassar.”
As canções interludem e o casal co-habita com o GI Joe e com a fada dos dentes, figuras que supostamente não existem, mas que como diria Murakami, e nas palavras de Cristina Carvalhal, “O que é que é real e o que é que é imaginário? Será que essa fronteira existe? Temos esta mania de dividir as coisas entre reais e imaginárias… O real não existe, somos nós que o forjamos, não é?”


O texto acaba por não ter uma mensagem, mas muitas leituras, permitindo ao público criar a sua própria história. Aqui também se exploram as ligações e a comunicação dentro da família. A filha e a mãe comunicam quase através de um terceiro elemento, a fada dos dentes (no espaço), o pai (no discurso). Também se fala de infidelidade, do quotidiano de um casal e de uma filha carente depois da morte do irmão mais novo. Procuramos um sentido, um final para a história, mas não é claro, nem directo. Cada um viverá esta história à sua maneira. “O texto dirige-se a uma zona mais inconsciente, a comunicação não é directa, funciona por acumulação, por outros processos e motivos, o do riso e o da piedade, no sentido da compaixão. É como um pesadelo que pudéssemos partilhar com o público e de onde saíssem com a sensação acabou, não sabemos quanto tempo teve e tentamos construir a história e encontra as razões para se ter sonhado com aquilo.”
O espectáculo conta com Cucha Carvalheiro, Diana Sá, Emílio Gomes, Luísa Cruz, Manuel Wiborg, Pedro Carmo e Sandra Faleiro. “A Orelha de Deus” estará em cena na Culturgest, em Lisboa (24 a 30 Setembro), no Teatro Vila Flor, em Guimarães (2 Outubro) e no Teatro Viriato (23 e 24 de Outubro).

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (18-09-2009)

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