segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A mudança pela verdade

Ifigénia na Táurida
Teatro da Cornucópia









“Ifigénia na Táurida” é um texto de Goethe, de 1787, com recriação poética de Frederico Lourenço, que serviu de abertura da temporada 2009/2010 do Teatro da Cornucópia. Com encenação de Luís Miguel Cintra e Beatriz Batarda como protagonista, este é um espectáculo que vive de um grande texto e da intensidade do trabalho da actriz.

O Teatro da Cornucópia tem esta imagem de associação a grandes textos que marcaram a história do teatro de uma forma geral. O teatro alemão do Romantismo e do pré-Romantismo já tinha sido, aliás, abordado pela companhia, pela sua importância para a História da Cultura Ocidental. Depois da encenação da recriação de “Don Carlos” de Schiller, contemporâneo de Goethe, assinada por Frederico Lourenço, o próprio parte para a recriação da “Ifigénia”.
Este é um texto que data do final do século XVIII, um período marcado por grandes transformações políticas e culturais no continente europeu, em que Goethe ressuscita da cultura grega da Antiguidade a história de Ifigénia. E esta transformação é bem presente no texto, em que se apresenta um caminho até à revelação da natureza humana, que é a revelação de cada indivíduo a si próprio. O trajecto de mudança só é possível através da verdade, amor à verdade.
Ifigénia (Beatriz Batarda) é filha de Agamémnon e Clitemnestra. O pai queria oferecê-la a um sacríficio, mas a deusa Diana salvou-a da morte e a partir daí ela passou a viver agradecida, como sacerdotisa de Diana, tendo sido trazida para a Táurida, onde viveu longos anos. O rei Toas (Luís Miguel Cintra) tem uma profunda admiração pela jovem, que o vê como um pai, com quem mantém uma relação de subjugação, à semelhança do que acontece com Diana.
Este espectáculo conta-nos o dia em que o seu irmão Orestes (Paulo Moura Lopes), perseguido pelas Fúrias, depois de vingar a morte do pai assassinado pela mãe, chega com o seu amigo Pílades (Vítor de Andrade) a essa terra de bárbaros. O rei Toas pretende que os estrangeiros sejam mortos e sacrificados por Ifigénia, que entretanto percebe que tem diante de si o irmão. Entra em confronto consigo própria, por perceber que aquele é o seu irmão, e que a sua ânsia de voltar a casa e ao reencontro com a família é possível, mas para isso terá de desobedecer ao rei e ainda de deixar a sua posição de agradecimento a Diana enquanto sua sacerdotisa. Orestes quer resgatar a irmã e regressar à Grécia para limpar a sua geração da maldição divina.
A peça revela-nos atitudes quase ilógicas, contrárias à razão, em detrimento da emoção e da verdade. Surgem questões éticas e morais, que esse reencontro provoca. Ifigénia quer voltar a casa, mas terá de encontrar uma forma de o fazer sem perder tudo aquilo que construiu em termos de relacionamento humano, e acima de tudo sem ir contra a sua verdade. Ela encara o rei como um pai e o regresso a casa, não abarcando as suas ordens e de o abandonar vai contra a sua verdade. Ela precisa do seu consentimento, para se libertar. Ifigénia é a personagem que representa a verdade, o questionamento, a libertação e Beatriz Batarda coloca muita emotividade em palco, fazendo com que a verdade da personagem passe a ser a sua verdade, enquanto a representa.
Com a sua revisão do mito antigo, Goethe questiona em versos belíssimos o conceito de humanidade, a relação dos homens com os deuses, a tensão entre a ideia de destino e a liberdade, a condição das mulheres, e a própria noção de soberania política. A peça coloca o homem face a um mundo de mudança, onde a transformação só é possível a partir da transformação das consciências individuais. Coloca-nos questões, é um texto que nos faz reflectir.
A música que se ouve ao longo do espectáculo é a peça integral para violoncelo solo deHans Werner Henze, Sérénade (1949), interpretada por Emmanuelle Bertrand, que dá ao espectáculo uma energia de tensão bastante adequada.
Com simplicidade e muita elegância, sempre com soluções que ajudam o trabalho de actor, Cristina Reis apresenta um cenário, cuja assinatura é já uma imagem de marca do Teatro, e que se por um lado nos permite reconhecer a qualidade da assinatura, por outro nos retira o efeito surpresa.
Estreado a 24 de Setembro, o espectáculo faz carreira até ao próximo dia 1 de Novembro, no Teatro do Bairro Alto.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (16-10-2009)


Créditos Imagem: L. Santos

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