terça-feira, 23 de dezembro de 2008

“No Cinema” – o espaço cinematográfico



Centro de Memória - novo espaço em Vila do Conde

O Centro de Memória, novo espaço cultural em Vila do Conde, abriu ao público, e para marcar este acontecimento, a Solar Galeria de Arte Cinemática inaugurou a exposição 'No Cinema', uma colectiva de diversos artistas, que estará patente naquele novo espaço até ao dia 30 de Julho de 2009. Na mostra são apresentados trabalhos de Cesário Alves, Sandra Gibson, Luis Recoder, Cristoph Girardet, Mathias Müller, Graham Gussin, Ariane Michel e Tsai Ming-liang.


O Centro de Memória é um espaço da Câmara Municipal de Vila do Conde, instalado na secular Casa de S. Sebastião. Com uma área de praticamente 2.700 metros quadrados, este edifício foi reestruturado para receber a componente destinada a exposições com temática focada na história da formação e evolução urbana, social e cultural da cidade. Os dois corpos novos duplicaram a área do edifício existente, perfazendo cerca de 5.400 metros quadrados, recebendo os depósitos do arquivo municipal, áreas de tratamento técnico, recepção, salas de exposições temporárias e permanentes, sala de leitura e sala polivalente, serviços educativos, espaço internet e cafetaria, compreendendo uma área de estanteria e módulo de armazenamento, naquilo que constituirá um dos mais modernos arquivos municipais. Existe ainda um jardim urbano dentro dos muros antigos do Solar, mantendo, no antigo logradouro, as pré-existências características de Vila do Conde medieval. Já de si este espaço tem bastante potencial, mas o que dizer quando vemos que além disso o projecto inaugural nos cativa de tal forma?
O cinema tem vindo a estabelecer uma relação privilegiada com o museu enquanto espaço expositivo, muito pela perda de magia das salas de cinema. Nas últimas décadas temos vindo a assistir ao desaparecimento das verdadeiras salas de cinema, substituídas pelos pequenos estúdios, nos anos 80, e depois pelos complexos de pequenas salas nas grandes superfícies comerciais. Assim, as salas foram desenraizadas, tendo começado a abandonar as suas áreas nobres, o centro das cidades. Constata-se uma certa nostalgia, que se tem manifestado em alguns dos cineastas da actualidade, assim como por artistas de outras áreas de expressão visual. Desta forma assistimos a uma integração dessa matéria noutros espaços que não as salas de cinema.



Em Vila do Conde, no contexto da realização do Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema em Vila do Conde, que acontece pela primeira vez em 2002, e associado ao mesmo, surgiu um novo projecto que tem vindo a conferir especial atenção a este fenómeno da intromissão do universo cinematográfico no espaço de uma galeria, a Solar - Galeria de arte cinemática.
“No Cinema” é uma exposição, comissariada por Dario Oliveira, Mário Micaelo e Nuno Rodrigues, que parte de um conceito relacionado com a memória cinematográfica e artística, e que relaciona um evento, o do início da utilização deste espaço, com a sua própria essência programática. A Solar – Galeria de Arte Cinemática tinha trabalhado com Tsai Ming-Liang, um artista que tem um interesse por outros lugares de apresentação de imagens em movimento, como o museu. “It´s a dream” foi concebido por Tsai para a exposição Atopia e foi esta a ideia base de organização desta exposição. Trata-se de uma obra que convoca para o espaço do museu uma sala de cinema revestida com espelhos, habitada por uma tela e um conjunto de cadeiras provenientes duma antiga sala de cinema da Malásia (país de origem do cineasta, onde nasceu em 1957). Nesta última é apresentado um filme que, também ele, exibe uma sala de cinema abandonada onde se encontram as cadeiras transportadas para o museu.
Também uma outra instalação “Deanimated”, recentemente exposta na galeria Solar a propósito da exposição Martin Arnold, esteve na origem deste projecto. Foi a partir destas duas instalações, que convocam para o interior do museu a presença física da sala de cinema, que se decidiu conceber esta exposição para o espaço do Centro de Memória, cujo título remete para a vivência passada e presente do lugar do Cinema. Trata-se de uma musealização do espaço do cinema e do seu espectáculo, a projecção numa sala escura., alternando-se, inevitavelmente, a noção de tempo. É criada uma nova relação temporal e espacial com o espectador, que é testemunha de um espectáculo público desvalorizado e ultrapassado pela passagem da projecção pública ao consumo privado.





“No Cinema” reúnem-se as obras “Cine-Teatro Neiva” (2008) de Cesário Alves, “Light Spill' (2006) de Sandra Gibson e Luis Recoder, “Play” (2003) de Cristoph Girardet e Mathias Müller, “Unseen Film” (2001) de Graham Gussin, “The Screening” (2008) de Ariane Michel e “It's a Dream” (2007) de Tsai Ming-liang.
“Ao longo das várias salas de exposição define-se um percurso que introduz o visitante num espaço de imersão, um espaço no qual vai (re)descobrindo vestígios do espaço do cinema, num contexto de bulimia visual que privilegia o fluxo interminável e fragmentário de imagens. Por sua vez, fomenta-se a circulação do espectador, o qual põe de parte a atitude contemplativa/passiva anteriormente assumida na sala de cinema. Nesta exposição, o visitante é convidado a percorrer os espaços, a descobrir as formas e os sons dos próprios mecanismos que permitem a fruição dos filmes. Perante as múltiplas e simultâneas projecções, o espectador é levado a percorrer as diversas salas de exposição, a fazer escolhas, permanecendo ou descobrindo novos espaços, integrando a própria obra artística.”, assim nos é apresentado o conceito da exposição, nas palavras de Nuno Rodrigues.
Esta é uma forma um pouco triste de reviver o cinema tal como gostaríamos que ele fosse porque nos dá a ideia de que jamais voltará a ter o seu espaço privilegiado na urbe, mas talvez a magia esteja aí, na passagem do cinema ao espaço de estilo museológico, em que possamos elevá-lo ainda mais à luz e ao foco artístico, porque o cinema toma a voz dos artistas plásticos e os artistas plásticos o diálogo do cinema.

ANA MARIA DUARTE
Artigo Publicado no Jornal Semanário (24.12.2008)

Branca de Neve, por Preljocaj


Versão fiel com espaço para simbolismo

“Branca de Neve” é a mais recente criação do Ballet Preljocaj, um bailado contemporâneo romântico baseado na versão do conto de fadas dos irmãos Grimm. Na linha das grandes obras de repertório inscritas na memória colectiva da dança, como a “Cinderela” ou “A Bela Adormecida”, Preljocaj propõe-nos a revisitação do conto da “Branca de Neve” para toda a família. O coreógrafo queria contar uma história e decidiu partir daí, contando com a participação de 26 bailarinos, acompanhados por alguns dos mais belos excertos das sinfonias de Mahler e com cenários de Hierry Leproust e figurinos de Jean-Paul Gaultier. O espectáculo será apresentado nos dias 27, 28 e 29 deste mês, no Centro Cultural de Belém.

Angelin Preljocaj é francês, filho de pais albaneses. Iniciou os seus estudos de dança clássica, tendo-se depois dedicado à dança contemporânea com Karin Waehner. Em 1980, vai para Nova Iorque trabalhar com Zena Rommett e Merce Cunningham, tendo continuado os estudos em França com a coreógrafa americana Viola Farber e Quentin Rouillier. Junta-se, em seguida, a Dominique Bagouet até à fundação da sua própria companhia em Dezembro de 1984. Desde então coreografou 38 peças, desde duos a grandes formações.
Algumas das criações mais recentes de Angelin Preljocaj como “Empty Moves” e “Eldorado” foram elaboradas num universo de maior abstraccionismo. Desta vez queria contar uma história, pelo que decidiu partir do conto “Branca de Neve”, mantendo-se fiel à versão dos irmãos Grimm, para criar um bailado romântico contemporâneo. A história é conhecida de todos, o que deu maior liberdade para se concentrar na linguagem dos corpos dos seus 26 bailarinos, dando mais atenção ao simbolismo e ao espaço, sem que, de qualquer forma, se perdesse o rumo da narrativa, já que essa tem um fio condutor e um espaço na memória colectiva já garantido. A fidelidade à versão dos irmãos Grimm é algo que o coreógrafo foca elevando-o ao lugar essencial no seu trabalho. A história é esta, as variações que são feitas dependem apenas de algumas visões e análises de determinados símbolos existentes no texto e no contexto do mesmo. A reivindicação do termo bailado advém exactamente da reunião dos 26 bailarinos da companhia, o que reflecte não só a vontade de trabalhar em universos opostos, mas também a importância que o coreógrafo dá a este seu trabalho.

Para “Branca de Neve”, Angelin Preljocaj construiu uma dramaturgia musical com alguns dos mais belos excertos das sinfonias de Gustav Mahler, cujos contornos românticos encantaram o coreógrafo e que combinam na perfeição com o universo maravilhoso conseguido pelos cenários de Hierry Leproust e pelos figurinos de Jean-Paul Gaultier. Eles dançam ao som das sinfonias de Mahler, cujos magníficos contornos são de essência romântica. “Historicamente, os contos de Grimm também o são, mesmo se o seu estilo límpido nos transporte para uma forma de contemporaneidade. É uma tarefa delicada, procurar emocionar. A música de Mahler é manipulada com grande cuidado, mas hoje é um risco que eu tinha vontade de assumir.”
Preljocaj conseguiu o que queria, trabalhar no oposto, “escrever algo de muito concreto e abrir um parêntese feérico e encantado. Para não cair nas minhas próprias rotinas, claro. E também porque, como toda a gente, adoro histórias.”.
Este espectáculo e a criação de Preljocaj permite-lhe contar uma história através da dança, de forma delicada e apaixonante. Os corpos dizem coisas além das histórias, assim como as energias e o próprio espaço, onde os personagens experimentam e sentem, de modo a conhecer a sua própria transcendência. Além disso, segundo o autor “Branca de Neve contém objectos maravilhosos para o imaginário de um coreógrafo”. Trata-se de um bailado narrativo, com dramaturgia, em que os lugares são representados pela cenografia de Thierry Leproust, e os bailarinos encarnam usufruem dos figurinos de Jean-Paul Gaultier.

A madrasta é a personagem central do conto e é nela que está o ponto de reflexão e de questionamento de Preljocaj ao desenvolver este seu trabalho. “É ela que eu também questiono, pela sua vontade narcísica em não renunciar à sedução e ao seu lugar como mulher, ao ponto de sacrificar a sua enteada. A inteligência dos símbolos pertencem tanto aos adultos, como às crianças, dirige-se a todos e é por isso que eu adoro os contos.” Uma história a ouvir, um bailado a deixar tomar o seu espaço.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (24.12.2008)

Mr. Antony Hegarty está de volta a Portugal


Antony actuará em Lisboa e no Porto durante o próximo ano. A acompanhá-lo vêm os The Johnsons, para a apresentação do novo álbum, “The Crying Light”. Grande notícia antes do final do ano, já em planeamento do próximo há tanto tempo.
Em 1998, Antony and The Johnsons editaram o primeiro álbum, homónimo. Nessa altura, nem todos estavam preparados para o ouvir, nem aceitar a sua singularidade. O seu lugar foi sendo conquistado, aos poucos, começando a ser reconhecido pelas suas múltiplas colaborações com as Cocorosie, com Devendra, entre outros. Hoje são uma banda de culto na música alternativa. Foi preciso esperar sete anos por um novo álbum de originais, mas a espera foi proveitosa. “I am a Bird Now” é um dos discos mais marcantes dos últimos anos e valeu à banda o Mercury Music Prize.
À semelhança do primeiro disco, “I am a Bird Now” foi escrito na íntegra por Antony Hegarty, mas graças ao sucesso do primeiro álbum, foi possível colaborar com artistas de grande renome, como Lou Reed, Boy George, Rufus Wainwright e Devendra Banhart para colaborarem nas gravações.
Depois da recente e muito aclamada colaboração de Hegarty com os Hercules & Love Affair, o músico lançou-se na gravação dum novo álbum, “The Crying Light” que será editado no início de 2009.
Numa progressão natural do EP “Another World”, a capa do álbum inclui um retrato de 1977 de Kazuo Ohno, um dos co-fundadores e mais reconhecidos bailarinos de Butoh, tirada por Naoya Ikegami em Tóquio.
No retrato, Kazuo Ohno é representado a tentar alcançar a luz, com o rosto e a postura reclinada a ecoarem elementos de berço e sepultura. A vida, a morte e a transcendência estão certamente evocadas neste retrato.
Venha o mês de Maio e esse álbum que a ânsia é grande. Os concertos serão nos dias 14 de Maio no Coliseu de Lisboa e 18 de Maio no Coliseu do Porto. Os bilhetes custam entre 20 e 50 euros, dependendo da proximidade física relativa a Antony e já estão à venda nos locais habituais.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (24.12.2008)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Concentrado de tragédia, romance e desespero, para diluir em cada um de nós


Estreia mundial da ópera “Outro Fim”

Este sábado, dia 20, pelas 21h30, no Grande Auditório da Culturgest, terá lugar a estreia mundial da ópera “Outro Fim”, de António Pinho Vargas com libreto de José Maria Vieira Mendes, uma co-produção do Teatro Nacional de São Carlos e da Culturgest
“Outro Fim” é uma história operática, que inclui em si mesma todos os ingredientes: tragédia, romance, desespero. Sobre si pairam os dramas familiares, as histórias de vida dos que, face a um quotidiano pouco exaltante e exaustivo, acabam por chegar às tragédias, quase como se fosse esse o cume para onde caminham ao longo de toda a subida construída ao longo da obra.
O espectáculo repete no domingo, dia 21, à mesma hora. Os bilhetes têm o preço de 25 euros, mas, como é habitual na Culturgest, até aos 30 anos os bilhetes têm um preço único de 5 euros.

“Outro fim” acontece em tempo reduzido, como se fosse um concentrado, pronto a diluir dentro de cada um de nós. A princípio parece contemplar espaço para todos, mas no final tem apenas espaço para poucos, os essenciais. Tudo começa com José Maria Vieira Mendes, essa grande promessa contemporânea. Primeiro havia a memória de um filme, depois a leitura de um livro e depois foi escrevendo e compondo aquilo que passou à condição de libreto. Ele próprio assim o comunica, ao processo: “Havia a memória de um filme. Uma memória que não era muito mais nítida que as imagens da sobreposição de duas caras, duas películas justapostas a encaixarem-se. Era também a ideia de máscara, era a palavra “persona”, era as duas mulheres, as identidades a confundirem-se. Era um reforço da ficção, uma demonstração da ficção. Para refrescar a memória não revi o filme, mas li o livro. Roubei umas frases que já não sei se ficaram e interessei-me quase em simultâneo por uma antiga ideia de ópera. E depois fui começando até acabar num libreto de Série B. Ou seja, uma história operática, com todos os ingredientes – trágica, romântica, desesperada – mas em tempo reduzido. Concentrada e apertada. A princípio ainda com espaço para todos, mas no final já só com espaço para poucos. E por culpa disto, por falta de espaço e também de tempo, as identidades, lá está, misturam-se, sobrepõem-se e atraem-se como o mercúrio. Os muros apertam, as portas fecham-se, as “personas” são obrigadas a encolher, a juntar-se aos outros até deixarem de ser. Ou até se mostrarem – e este é um vício que ainda não sou capaz de abandonar – gente de um autor, coisa de papel, fina película sem carne nem osso.” Só este texto de José Maria Vieira Mendes já seria suficiente por si só a suscitar a necessidade composta de criação de António Pinho Vargas. É isso que acontece.
António Pinho Vargas pega no libreto “Outro Fim” de José Maria Vieira Mendes e constrói uma ópera, na qual conta com direcção musical de Cesário Costa; encenação e espaço Cénico de André Teodósio, em parceria com Vasco Araújo, e com interpretação de Larissa Savchenko (Mãe), Sónia Alcobaça (Mulher), Madalena Boléo (Cunhada), Luís Rodrigues (Homem), Mário Alves (Irmão) e ainda elementos da Orquestra Sinfónica Portuguesa. A equipa é já de si promissora. Quando o lê pela primeira vez, esse libreto, António Pinho Vargas sente três coisas: “que as palavras tinham uma plasticidade muito adequada a uma ópera, que a acção dramática se desenrolava com o ritmo de uma peça de teatro e, finalmente, que as personagens eram ricas, tinham espessura e complexidade psicológica. O trabalho de composição tinha, de facto, tudo para poder ser começado e assim, começa pelo texto, pela interpretação das situações e pela consideração do seu potencial.”
Vai criando materiais musicais que são sujeitos a transformações e a derivações de si mesmos conforme o desenrolar da acção e a contingência do próprio acto criativo. Por exemplo, “A divisão do palco em três lugares da acção visíveis em simultâneo, sendo um deles um café, motivou a escolha de divisões entre a localização principal dos músicos no fosso e de pequenos grupos instrumentais on stage em certos momentos.”
Esta é uma obra operática para ver este fim-de-semana na Culturgest, para saborear os ingredientes dentro de cada momento e de cada espaço no palco, mas para diluir posteriormente o essencial que estará comprimido espacial e temporalmente, mas não criativamente. Para deixar entrar.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (19.12.2008)

A Man in a Room Gambling



Gavin Bryars Ensemble
Iniciativa paralela à exposição de Juan Muñoz

Gavin Bryars Ensemble interpreta “A man in a room gambling”, numa iniciativa paralela à exposição hoje, dia 19 Dezembro, às, 22h00, no Auditório de Serralves.
O Gavin Bryars Ensemble interpreta uma selecção de temas que resultam da colaboração de Bryars com Juan Muñoz. “A Man In A Room Gambling” surgiu de uma encomenda da BBC Radio 3 e da Artangel, e foi concebido para ter o carácter de um programa de rádio, e desenvolvendo-se segundo uma sequência de textos sobre estratégias usadas em jogos de cartas, acompanhados por música. “Desde o lançamento do trabalho, este tem vindo a ser apresentado como concerto musical ao vivo, onde conjuntos de quatro ou cinco peças são interpretados em sequência, como neste caso, e a orquestração tem sido modificada para dar uma instrumentação ligeiramente diferente a cada peça. O objectivo continua a ser, como no caso da Shipping Forecast, o de dar ao ouvinte a vaga impressão de que isto pode ser uma actividade altamente dramática e gerar a sensação de um espaço imaginário nestes cinco minutos.....”. O programa deste concerto inclui ainda “The North Shore”, a obra memorial que Bryars dedicou a Muñoz.
Gavin Bryars é um compositor e contrabaixista inglês com trabalho realizado em áreas musicais tão diversas como o jazz, a improvisação e a composição musical, abordando linguagens como a experimentação, o minimalismo e o neoclassicismo. Ao longo da sua carreira, Byrars tem também investido em várias colaborações com encenadores e coreógrafos, de onde podemos destacar Robert Wilson (na ópera Medea”, ou na inacabada “CIVIL WarS”), Merce Cunningham (em “Biped”) ou Lucinda Childs (com “Four Elements”) Entre as suas obras mais conhecidas encontramos “The Sinking Of The Titanic” e “Jesus Blood Never Failed Me Yet”.
A propósito deste projecto, Gavin Bryars diz que quando o convidaram para esta colaboração, “(…) Obviamente, a ideia de trabalhar com um escultor num meio não-visual era muito interessante e constitui um desafio, especialmente quando percebi que íamos tentar descrever acções que envolvem truques e ilusões visuais e depois inseri-las num contexto de difusão radiofónica.(…). Para o nosso projecto, que acabou por se chamar “A Man in a Room Gambling” (“Um homem num quarto, apostando”), Juan escreveu dez textos, cada um descrevendo a manipulação de cartas de jogar – distribuindo as cartas do fundo do baralho, evitando fracassar no Three-Card Trick (truque de três cartas), escondendo uma carta na mão, etc. Algum deste material foi recolhido dos ensaios do mestre canadiano, S. W. Erdnase especialmente do seu livro “The Expert at the Card Table” que contém alguns dos mais perfeitos truques envolvendo a manipulação de cartas. Decidimos que cada episódio duraria cinco minutos e seria concebido para ser difundido antes do último noticiário da noite para assegurar que o programa, pelo menos na Grã-Bretanha, seria ouvido um pouco como o “Shipping Forecast” (Prognóstico Marítimo), que é difundido pelo BBC a quatro horários muito específicos durante cada dia. Do seu lado, Juan imaginou um ouvinte conduzindo o seu carro na autoestrada à noite, estupefacto por encontrar esta curiosidade efémera e talvez enigmática, precisamente na mesma maneira que a maioria dos ouvintes reagem ao Shipping Forecast.”
Serralves recebe um programa que nos possibilita ver aquilo que foi construído para a rádio, durante duas horas. Por outro lado, a RUC (Rádio Universitária de Coimbra) estará em Serralves, para uma emissão especial entre as 22h e as 24h em 107.9 FM. A transmissão em directo possibilita aos ouvintes a vivência desta obra inicialmente concebida para a rádio, mesmo se desta forma os ouvintes não experenciam a obra em partes, como inicialmente, mas numa sequência que seguramente nos transportará para um lugar imaginário e que nos fará compreender melhor, ou pelo menos ter uma visão de um ângulo diferente, da obra de Juan Muñoz.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (19.12.2008)

Juan Muñoz: uma retrospectiva


Forma humana de arte
Escultura em Serralves

A exposição do escultor Juan Muñoz no Museu de Serralves poderá constituir, por si só, um motivo para ir ao Porto. Depois de ter passado por Londres e Bilbao, a mostra de um dos escultores mais inovadores dos últimos anos poderá ser vista até ao dia 18 de Janeiro.

Exposição co-produzida pela Tate Modern, Londres, e a Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior de España – SEACEX, em associação com o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, a exposição do escultor espanhol Juan Muñoz, chega à cidade do Porto, depois de passar pela Tate Modern, em Londres, e pelo Museu Guggenheim, em Bilbao.
O artista Juan Muñoz faz parte de uma geração de artistas europeus surgidos nos últimos vinte anos, cuja obra alargou consideravelmente a linguagem da escultura, por ter recolocado a figura humana no centro da arte, criando tantas vezes obras que provocam não só sensações momentâneas através da utilização da ilusão óptica, mas que nos provocam sensações e reflexões retardadas no tempo por nos recolocar numa posição de questionamento artístico e individual. Ao longo da sua carreira, precocemente terminada, Muñoz conseguiu devolver à figura humana um lugar central na arte mas recolocando-a, através da sua perspectiva única, num local ao mesmo tempo familiar e estranho.
Muñoz nasceu em Madrid em 1953. Na década de setenta viajou para Inglaterra para estudar no Croydon College e na Central School of Art and Design. Em 1982 viajou para os Estados Unidos, prosseguindo os estudos no Pratt Centre de Nova Iorque. Teve a sua primeira exposição em 1984 na galeria Fernando Vijande, de Madrid. Desde então expôs os seus trabalhos frequentemente na Europa e em outras partes do mundo. O escultor faleceu subitamente, aos 48 anos de idade, na sua casa de Verão em Ibiza, a 28 de Agosto de 2001. Na altura da sua morte a sua obra Double Bind estava em exposição na Tate Modern, em Londres. Foi este o museu a mostrar primeiro esta exposição que possibilita ao público conhecer e viajar pela sua obra, através de uma visão que funciona em retrospectiva.
A exposição, agora patente em Serralves, inclui obras chave de todos os aspectos do trabalho de Juan Muñoz, incluindo as bem conhecidas esculturas e instalações, mas também som e os esboços dos desenhos Raincoat, entre outras séries. Inovadora e abrangente, esta mostra cria, através do encontro com as suas conversation pieces ou esculturas sonoras, formas inteiramente novas de ver e pensar sobre nós.
Muñoz alcançou a notoriedade em meados da década de 1980, altura em que protagonizava o movimento vanguardista do regresso à forma humana na arte. As figuras de Muñoz não são, contudo, a matéria tradicional da escultura clássica. “Situadas em ambientes arquitectónicos, podem estar sentadas em bancos ou colocadas a meia altura numa parede. São, com frequência, figuras de um circo, de um teatro ou de um quadro de Velázquez – anões, pontos de teatro, bailarinas – imobilizadas num momento e subentendendo uma história implícita que ao público cabe imaginar.”. Esta não-categorização das figuras, que por isso podem ser categorizadas e rotuladas pelo público, ou não, porque cabe a cada um integrá-las num espaço próprio, distanciado da própria condição de escultura, constitui a principal essência do trabalho de Muñoz, que desta forma criou no seu tempo um movimento de vanguarda, mas que perdura pela sua capacidade de fazer reflectir, sem tempo.
Além disso, e apesar de naturalistas, as figuras que constituem as suas esculturas têm uma estatura inferior à dos humanos, parecendo por isso feitas à escala real quando observadas à distância mas distantes do observador quando vistas de perto, uma ilusão óptica frequentemente utilizada pelo autor. Esta é, sem dúvida, uma exposição a não perder e que ficará aberta ao público, no espaço do Museu de Serralves, durante mais um mês, tendo inaugurado no mês de Outubro. A próxima visita guiada a esta exposição será realizada a 13 de Janeiro, às 18h30, por João Fernandes.
ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (12.12.2008)

Histórias inimagináveis cheias de magia e poesia


O Óscar tem um jardim
Teatro de Marionetas do Porto

O Óscar é um menino e tem um jardim. À passagem das quatro estações do ano, este menino, que adora brincar e que tem como amigos não só os humanos, como o jardineiro Joaquim, mas também os animais e as plantas, vai-nos oferecendo o seu mundo. Neste jardim tudo pode acontecer, depende sempre da imaginação desta criança que partilha as histórias com as outras crianças, mas também com os adultos. “Óscar” é uma peça escrita para marionetas, embora tenha já sido representado em forma de teatro infantil. O texto e a encenação são de João Seara Cardoso e o teatro de Marionetas do Porto apresentou-a, pela primeira vez em 1999, tendo vindo a ser reposta em vários locais. 9 anos depois é apresentada no Centro Cultural de Belém, de 12 a 14 de Dezembro.

“O Óscar tem um jardim, e o jardim era assim (…)”, desta forma começa a história do Óscar e do seu jardim, o seu lugar de brincadeira preferido. Ali constrói mundos imaginários, onde se relaciona com animais e plantas, além do seu fiel amigo, o jardineiro Joaquim, que teima em enganar, escondendo-se atrás das árvores.
Eles são apenas três, os manipuladores das marionetas, essas que são senhoras e tomam conta do palco – Edgar Fernandes, Sérgio Rolo e Sara Henriques, mas contam uma história repleta de personagens aliciantes. Para ajudar existe um cenário de onde surge poesia que passa para o espaço. Uma espécie de “mesa-telhado-inclinado” por cujos postigos surgem e desaparecem as histórias. Além de toda a poesia envolvente, desenham-se linhas no texto de uma destreza que permite o desenvolvimento contínuo desta fábula.
Neste jardim é possível ver o Ouriço Ribeiro que anda a colher maçãs para a sua fábrica de compota de maçã, o porco Cambalhota que tanto “cambalhotou” que um dia foi parar à lua, de onde pede ajuda ao Óscar para voltar ao jadim. Além disso ainda há uma vaca radical que bebe as poças do jardim todas até ficar cheia de vontade de ir à casa de banho. Nesta altura já passámos pelas estações todas, porque a última é o inverno e a vaca já anda a beber a água da chuva, mas no entretanto tomamos contacto com uma laranjeira que só dá laranjas amanhã, um capitão Iglo que encalhou numa poça de água do jardim (Porquê? Porque a vaca bebeu as poças todas), as flores que andam sempre a mudar de lugar e a baralhar o pobre Joaquim, o Gigante que tem um outro mundo imaginário onde há um carrossel e tudo gira dentro da sua cabeça. O gigante come o Óscar dentro de uma baguete gigante, prometendo uma viagem que só poderia ser aliciante para uma criança, já que não faltarão doces e outras coisas mais. Mas ele volta ao palco. Há ainda a galinha Chocapic que choca um ovo que não é novo e vai-se a ver e é a bola de futebol do Óscar, e ainda por cima a galinha está a chocar o ovo mesmo em frente à porta de casa da lagarta, que está sempre a perguntar: “Já nasceu?”.
No mínimo este espectáculo tem um texto cheio de coisas engraçadas de tão inacreditáveis, mas que são mágicas por isso mesmo. “E agora já nasceu?”. O espectáculo vai-se desenrolando com estas histórias dentro da história, estruturado pela passagem das quatro estações, possibilitando também a aprendizagem, já que o jardim se vai vestindo de diversas roupagens. As histórias, a música, as cores, as palavras e os cheiros vão tomando a forma das sensações que caracterizam o jardim durante as diferentes fases do ano.
Mas mais do que um espectáculo didático, esta é uma peça que explora sensações e que possibilita uma viagem extraordinária. Esta é uma viagem ao interior de um rapaz porque nos deixa entrar nas suas aventuras, que são criadas a partir de elementos da sua imaginação. Divertimento puro. A mesma laranjeira de que falávamos há pouco anda a pentear uma laranja. Existem mesmo coisas inacreditáveis: verbos novos como lagartar ou cambalhotar, ideias sem nexo, mas que afinal fazem sentido e rimas sem fartar.
No fim chega o inverno. O Óscar já não pode brincar no jardim, mas continua a interagir com os seus elementos, a partir da janela da sua casa. Quando pára de chover, lá vai ele chapinhar nas poças de água. O inverno chega ao fim… e depois? Especialmente concebido para crianças a partir dos três anos de idade, “Óscar” é uma obra capaz de sensibilizar os adultos que acreditam que a vida também passa pela fantasia.
Quem dera às crianças de Lisboa e outras tantas poder brincar como antes, nas poças da chuva e nos jardins, criar estes mundos imaginários com os amigos de fantasia que agora vemos cada vez mais apagados. Quem dera a elas e quem dera a nós. A cidade era tão mais bonita quando as crianças corriam pelo bairro da Graça.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (05.12.2008)

Improvisação e experimentação | Carlos Zíngaro e Pascal Contet

No âmbito do ciclo “Isto é Jazz?”, terá lugar, esta noite, pelas 21h30, no Pequeno Auditório da Culturgest, o concerto de Carlos Zíngaro. Ele é simplesmente um dos mais respeitados em termos de música jazz de imporvisação, em Portugal. É também o mais internacional, sendo amplamente reconhecido pela crítica. Tem mais de 50 discos editados e já foi distinguido pelo seu trabalho e percurso. Acho que são elogios suficientes e motivos também. Mas há mais um: ao seu lado está um dos “must” na improvisação – o acordeonista Pascal Contet.

O percurso de Carlos Zíngaro começou na década de 1970, neste universo, ao lado de músicos como Anthony Braxton, Richard Teitelbaum, Fred Frith, Derek Bailey, Joëlle Léandre, Otomo Yoshihide, George Lewis e Daunik Lazro. Estudou musicologia, música electro-acústica e música contemporânea (teatro-música), designadamente na Universidade Técnica de Wroclaw (Polónia) e na Creative Music Foundation (New York) onde contactou com Anthony Braxton e Richard Teitelbaum.
A carreira como violinista de orquestra deixou de lhe interessar face à curiosidade pelas músicas que a Portugal iam chegando na década de 60 apesar do isolacionismo promovido pela ditadura. Ele foi experimentando e incorporando coisas na sua linguagem. Fê-lo como um pioneiro absoluto entre nós dessas práticas musicais e no processo muito depressa se destacou a nível internacional, apesar de continuar a ser um pouco ostracizado ou pelo menos ter poucos olhares atentos sobre ele. O normal. Mas por acaso, agora que comemora os seus 60 anos, este concerto parece culminar um período de excepção: este é o seu quarto concerto português em espaços nobres. Depois do ZFP Quartet no Jazz ao Centro, do Spectrum String Trio nos Dias da Música em Belém (CCB) e do trio com John Butcher e Gunter Muller no Música Portuguesa Hoje (CCB), o dueto com Pascal Contet demonstra uma vez mais que não é possível confinar este enorme músico num âmbito bem definido e arrumado. “Isto é Jazz?” - pergunta-se. Zíngaro responde: «Continuo a não me considerar um “músico de jazz”, apesar de todo o fascínio que essa música sempre despertou em mim. Não tive nem tenho a vivência e o percurso técnico ou prático do jazz. O free jazz de finais de 1960 e inícios de 1970 era para mim quase mais um acto político, a revolta de quem fora “condenado” por um regime ditatorial a cerca de três anos e meio de serviço militar obrigatório, mais de dois dos quais em África, na guerra colonial. O direito a contradizer o que era “normal” na altura – o clássico bem-pensante, a pop melodiosa, o (muito pouco) jazz de hotel... Tais situações empurraram-me para radicalismos de que ainda hoje sofro as consequências, por parte de pessoas que me condenaram na altura a atitude revolucionária, mas depois da revolução passaram a considerar-se elas mesmas “revolucionárias”. No fundo, muito pouco mudou, pois agora algumas dessas pessoas esqueceram as suas “derivações revolucionárias” e são detentoras do poder. Não se contentando em determinar o que é ou não “jazz”, têm a capacidade fantástica de determinar o que é ou não é música! E como tal, apenas se não puderem boicotarão qualquer presença “perturbadora” do seu “status”...».
Ele foi pioneiro em Portugal na utilização das novas tecnologias na composição e interacção em tempo real e toca nos mais importantes festivais e concertos de “improvisação” e “nova música” na Europa, América e Ásia, a solo ou em grupos com os compositores/músicos internacionalmente mais significativos nestas áreas musicais.
Paralelamente colaborou com diversos coreógrafos, encenadores e realizadores como Olga Roriz, Vera Mantero, Giorgio Barberio Corsetti, Ricardo Pais, Ludger Lamers e Francis Plisson.
Contet, por sua vez, estudou na Alemanha (Musikhochschule de Hanover) e na Dinamarca (Conservatório Real de Copenhaga). Ao seu repertório habitual de concerto a solo (com obras de grandes nomes da música erudita, contamporânea ou barroca, como Gubaidulina, Kagel, Donatoni, Bartok, Couperin, Scarlatti, Monteverdi), juntou, depois de 1992, as criações de Ballif, Berio, Bedrossian, Cavanna, Drouet, Fedele, Fénelon, Françaix, Globokar, Jodlowsky, Moultaka, Monnet, Naon, Rebotier e Torres-Maldonado. Tal como Zíngaro, o seu percurso musical é marcado pelas constantes cumplicidades com outras formas artísticas como a dança contemporânea, o teatro, as artes visuais e pela persistente pesquisa de novos sons e novas fronteiras.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (05.12.2008)