Teatro naturalista à espera de um rasgo
“Menina Júlia” é um texto clássico da literatura dramática universal. O Teatro Dona Maria II levou-o a palco encenado por Rui Mendes e interpretado por três actores: Albano Jerónimo, Beatriz Batarda e Isabel Abreu. Um grande texto sem grandes re-leituras por parte de Rui Mendes, mas que, mesmo assim, nos leva a algum questionamento.
“Menina Júlia” é sem dúvida um dos textos mais representados e um dos mais importantes de Strindberg. A importância e a qualidade deste texto de época é inegável, mas em 1888 faria certamente mais sentido do que nos dias de hoje, mesmo que Beatriz Batarda e Albano Jerónimo consigam realmente passar-nos, através da sua interpretação, o conflito e a maldade que existiria no confronto da condessa e do criado, próprio de uma luta de classes.
O texto explora exactamente duas vertentes, inseparáveis, a da luta de classes e a da luta de sexos, de uma forma política, mas submersa num ambiente romântico, através de uma história de amor trágica. O eco dos primeiros temas (luta de classes e luta de sexos) está hoje mais escondido na sociedade contemporânea, sendo mais difícil dar-lhes um sentido. É nas temáticas do amor, do ciúme, da traição, da sedução, da responsabilidade e da culpa, menos explorados em termos de encenação, que sentimos maior eco naquilo que continuamos a viver hoje: as relações emocionais, o discurso emocional versus o discurso racional, e é nesses momentos do espectáculo que sentimos que os actores também se impõem mais.
Revolucionário por natureza, Strindberg explorou neste texto uma estética naturalista. Esta estética podemos vê-la também na encenação de Rui Mendes e na cenografia, que pretende criar o ambiente da época, mas em que existem alguns traços de modernidade, e pouco simbolismo, uma fome que o texto nos provoca e que seria interessante ver no próprio ambiente e na encenação. Rui Mendes encena um texto marcante pelas inovações estilísticas e pela densidade psicológica das personagens, mas com pouca inovação, rasgo, ou qualquer reinterpretação.
Em termos de interpretação encontramos uma dupla que funciona em termos de empatia em palco: Albano Jerónimo e Beatriz Batarda, com a actriz numa personagem em que explora o seu lado infantil e com bastante intensidade nos seus curtos monólogos, e Albano Jerónimo num registo justo de sofrimento de luta de classes. Contudo, sentimos ambos, ao longo da peça, a dispersar algumas vezes, à procura da reacção do público. De qualquer forma existem muitos momentos de equilíbrio entre os actores e uma qualidade indiscutível. Beatriz Batarda consegue atingir realmente a ideia de fidalga inocente, mas provocadora, o universo da aristocracia e da sua necessidade de jogo de sedução próprio de uma mulher que quer mudar, mas que tem medo do desconhecido. O seu discurso final sobre a responsabilidade individual de escolha e de consciencialização de que esta terá sempre de ser sua é realmente conseguido, transmitindo-nos o choque emotivo que ansiávamos desde o início do espectáculo, já meio desvendado quando fala sobre a relação com a sua mãe e o seu pai.
Isabel Abreu, por sua vez, surge com uma interpretação em que explora muito pouco a intensidade da personagem, o seu lado mais emocional, apresentando uma empregada muito certinha, em que percebemos claramente que poderia ter existido uma maior libertação de sensações e sentimentos, mesmo contribuindo da mesma forma para a imagem de criada resignada, mas em que fossem mais transparentes a sua dor e a sua moral. O grupo de actores que aparece no início e a meio da peça é um elemento destabilizador da qualidade que se sente ao nível da interpretação.
Censurada na época, esta é uma peça que hoje estimula uma história intimista, onde interessa sobretudo o questionamento individual do conflito, da sedução pela sedução, dos ódios e ciúmes que se manifestam no confronto com o outro, como jogos de poder e jogos de atribuição de culpa.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (15-05-2009)
1 comentário:
Não querendo ser inconveniente, o seu artigo pareceu-me bastante amargo. Tipico de uma certa imprensa portuguesa pseudo-qualquer-coisa onde faz parte não gostar de nada para se ter um estatuto respeitável e critico. Permita-me discordar, mas as interpretações foram excelentes. O actor Albano Jerónimo esteve soberbo a interpretar o papel de Jean, desempenho aliás digno de qualquer palco internacional. Quanto à actriz Isabel Abreu, por favor, não confunda contenção e subtileza com falta de profundidade. Não é para qualquer actriz chegar tão perto do espectador sem recorrer a dramatismos clichéticos. Mas pronto, esta é a minha opinião. A senhora tem a sua que até é publicada num jornal semanal.
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