sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Gregory Maqoma, animal de palco


Gregory Maqoma nasceu para isto, para nos transmitir informação. “In stage, I lose myself and I get the energy from the audience”. As palavras ditas por Gregory Maqoma, em conversa posterior ao espectáculo, só vêm confirmar a sensação de transmissão de energia para o palco, enquanto o seu corpo se movimentava de forma tão intensa. Um espectáculo de cortar a respiração, de entrega total. Ele é um animal de palco. No passado dia 23 de Setembro, na Culturgest, “Beautiful Me” revelou-se uma experiência transcendental.

“Beautiful Me” foi o trabalho trazido pelo coreógrafo ao palco da Culturgest, que partiu da fusão de trabalhos e dádivas de três importantes coreógrafos - Akram Khan, Faustin Linyekula e Vincent Mantsoe -, mas que acima de tudo é sempre único, sempre diferente. Este é um trabalho em que experimenta sempre coisas e sentimentos diferentes, até porque o processo de criação é constante, provocando sempre mudanças ao nível do que vive em palco. Nesta peça Maqoma desafia a noção de dança, na procura de uma definição ou redefinição da sua própria linguagem coreográfica.
A abertura do espectáculo dá-se com uma conversa com o pai: “Papá, eu sou um pavão, tenho cores lindas (…)”, começando uma espécie de ritual, que tem em si não só uma linguagem que funciona como extensão do trabalho dos três coreógrafos que estão na base deste espectáculo, mas que reúne e respira histórias, momentos em que se ultrapassa e em que nos transmite tudo aquilo que encontrou para si. Ele transforma-se em vários animais, trespassa vários universos de energia, confunde-se com a luz e com o escuro do palco e os seus braços tocam os sons que saiem dos instrumentos que ecoam ao fundo do palco, trazendo-nos cores nunca vistas. Ele ali foi um pavão feito de notas musicais.
O processo de criação deste espectáculo foi global, e essa noção conceptual de um processo com dois lados, em que a forma é tipicamente win-win, sente-se em todo e qualquer momento do espectáculo. Mais tarde, em conversa, explica como foi criada esta conjuntura musical. “Não estava nada escrito.” Acaba por se definir como “the school”, em termos de aprendizagem para os músicos, porque foi a sua inspiração. Ele escolheu os instrumentos e tentou beber a complexidade das melodias. Ele deu-lhes movimentos, eles deram-lhe sons e a nós deram-nos verdadeiramente tudo o que tinham para dar. As respirações lidas no seu corpo misturavam-se harmoniosamente com as vocalizações do percussionista e do violinista. A cítara electrónica, instrumento escolhido por Akram, deu-lhe o toque de génio.
Entendi este espectáculo como um solo acompanhado por uma performance musical. Gregory Maqoma trabalhou com quatro músicos de origem africana (Poorvi Bhana, Bongani Kunene, Gicen Mphago e Isaac Molelekoa) que se distinguem pelos sons especificamente africanos que tiram dos seus instrumentos e pela sua dedicação ao aprofundamento deste género musical.
Aqui a música teve um papel fundamental, tanto no desenvolvimento da coreografia, como na experimentação por parte do público.
Gregory bebe muito nas experiências culturais da sociedade, daí também a profundidade do seu trabalho. Nesta peça viaja em termos de movimentos numa composição com contribuições dos três coreógrafos, em que mistura linguagens e vai-nos contando várias conversas, como a que teve com Faustin: “Temos falado muito sobre espaço e eu sei que o espaço é importante para ti. Acho que devia, antes de mais, dizer-te em que ponto me encontro. Falámos em apagar nomes e apagar a história.(…)”. Gregory enquadra nomes históricos e fala com o público sobre as suas origens, as histórias exóticas que tem de vender para sobreviver. Ele é da Repúblicas Democrática da África do Sul.
Integra também uma conversa de uma beleza incrível que tivera com Akram e Vincent. Aqui fala do regresso ao 1, para se encontrar a si mesmo; fala das dificuldades, da posse, da procura. A última conversa que Gregory conta é a da Letra R: “Quando era jovem, acho que tinha 9 ou 10 anos, o meu pai costumava fazer-me escrever a letra R cem vezes, e eu tinha de lha gritar cem vezes. Nunca consegui pronunciar o meu próprio nome. Gregory.” Ele é um animal de palco verdadeiramente e supera-se a si próprio.
O seu corpo torna-se assim um retrato em movimento, reinterpretando emoções e histórias, e traduzindo criativamente, a partir da tradição e da linguagem, elementos que lhe eram pouco familiares. “There’s no end…” porque cada ciclo que termina, permite o recomeço. É tudo contínuo, começa e acaba onde recomeça. O palco é como uma plataforma transcendental. Respira, recomeça.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.03.10.2008)

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