sexta-feira, 3 de outubro de 2008

“Entre o Dia e a Noite”, um espaço de memórias individuais



Um diálogo emotivo sobre liberdades

“Entre o Dia e a Noite” está inserido num ciclo de acolhimento a novos criadores. Try Better. Fail Better ’08 é da responsabilidade do Teatro Garagem e serve de espaço de experimentação, de lugar para novidades criativas. Esta é a primeira encenação profissional de Adriana Aboim e conta uma história de amor, de liberdade, de tensão. Acima de tudo este é um diálogo a quatro vozes, assumido como uma co-criação, tendo em conta o processo criativo. Com Pedro Carmo, Adriana, João Aboim e Carolina Matos, estará no Teatro Taborda até 5 de Outubro.

Na base da criação de Adriana Aboim estava uma ideia muito definida: trabalhar esta história a quatro vozes, criando um diálogo coerente entre as palavras de um homem e de uma mulher, e as sonoridades de um violoncelo e de um piano. Tudo isto numa abordagem realista criada num espaço intimista, onde fosse possível criar uma grande proximidade entre o público e os intérpretes.

Adriana adoptou um processo criativo de grande cumplicidade com a equipa, em que a peça foi sendo construída de acordo com aquilo que todos iam dando ao longo dos ensaios. A verdade é que funcionou. “Entre o Dia e Noite” é mesmo um diálogo a quatro vozes, principalmente porque os músicos conseguem ser mais do que isso, conseguem ser também eles actores. Porque os seus olhares se cruzam em momentos cruciais de diálogo que acontecem entre Adriana Aboim e Pedro Carmo, porque a respiração de Carolina ao tocar violoncelo se mistura com a tensão de um toque entre eles, mesmo que esse não aconteça, mesmo que não seja propositado.

A história em si mesma é tensa. A noite de passagem de ano, aquela entre a noite de ano velho e o dia de ano novo. Rosa odeia essa data pelas memórias da primeira vez que a mãe a deixou, no sentido de a proteger dada a sua incursão, sem regresso, na luta pela liberdade. Ao longo da história vamos percebendo determinado background histórico: a envolvência da Rússia, do vermelho da revolução que nos é transmitido através de frases e contextos da história de Rosa. A sua mãe lutava pela liberdade. Jorge também era um revolucionário. Há uma matrioska em cima da mesa do quarto que nos envolve e um chapéu russo que, a certa altura, é usado por Rosa. O espaço é de facto intimista. O cenário é simples e tem ar de quarto onde se trocaram beijos e reflexões sobre tudo e mais alguma coisa.

Os dois encontraram-se, viveram um amor impossível, pelo menos assim o entendem, separaram-se e, 15 anos depois, Jorge volta e encontra Rosa no quarto onde tanto tempo antes tinham vivido uma relação amorosa repleta de desequilíbrios que continuam presentes.

A passagem de ano marca decisões, um novo recomeço. Ambos o desejam intimamente, naquele tempo sem tempo onde se encontram num espaço onde parece apenas existir tempo para os dois. Jorge viveu, viajou, lutou, Rosa sobreviveu, casou e teve uma filha. Nunca mais se viram desde então. Tomaram decisões, todas as personagens o fizeram, incluindo a mãe de Rosa, ao deixá-la. Rosa e Jorge acusam-se, culpam-se, amam-se. De forma incontrolada começam a aproximar-se fisicamente. A tensão é crescente, entre a música tocada pelos fantásticos intérpretes João Aboim e Carolina Matos e as palavras soltas sussurradas e gritadas de Pedro e Adriana, respectivamente, sentimos a nossa respiração mais rápida, mais angustiada.

Esta peça fala-nos não só de uma história de amor sofrido, de duas pessoas que se separaram e que não conseguem ultrapassar isso, reflectido na força que Adriana Aboim (Rosa) passa pela sua voz trémula e pela forma como se deixa levar pelos pequenos toques, pela forma como lhe diz: “Estás mais gordo…”, e que Pedro Carmo (Jorge) passa através da forma como se movimenta em palco, como abre a janela do quarto, que dá para a varanda da Sala de Ensaio e olha as luzes da cidade, falando da saudade do mar, mas implicitamente da saudade de Rosa; esta peça fala-nos também das reflexões individuais, do poder do indivíduo. Mostra-nos que, apesar de toda a envolvência, o indivíduo está entregue a si próprio, que as escolhas (neste caso de Rosa e Jorge, quando Jorge decidiu partir e Rosa ficar, mesmo que Rosa considere que foi algo decidido por ele e ele passe maior parte do tempo a convencê-la, ou a convencer-se, de que foi algo decidido mutuamente) definem os caminhos de cada um. As decisões são momentos em que nos questionamos e em que percorremos os limites das nossas liberdades. Aqui fala-se de liberdade política, de decisão, de liberdade humana, de relacionamento, de liberdade de escolha. A vulnerabilidade das personagens vem daí, desse universo. Em último plano, eles são os únicos responsáveis pelas suas decisões. A liberdade procurada nas revoluções, aquela da história em background conceptual, é aquela que fica na memória social colectiva, mas são as liberdades diárias aquelas que são mais emotivas e que ficam na memória individual. É um jogo afectivo que está em palco. A intensidade e tensão reflectidas no trabalho passam também pela forma como foi desenvolvido, de criação conjunta, da forma emocional como se sente que trabalharam.

Além da revolução de memórias afectivas trazida pela peça, eles relacionam-se novamente com os mesmos objectos com que já se haviam relacionado. Toda esta peça é um regresso a um lugar onde já estiveram, mas que não é igual, mesmo se se continuam a amar, e que falem não muito objectivamente desse sentimento, eles, enquanto indivíduos, estão diferentes. A mãe de Rosa bate à porta do quarto. Nunca a vemos. Só a ouvimos, através da sua voz seca a chamar Rosa e através da voz de Rosa a falar-nos dela. É ela própria uma voz presente, a quinta voz. E respiramos fundo por ter terminado a angústia daquele momento, mas entre o cheiro a cigarros que fica pelo fumo partilhado e a sonata de Shostakovich que não nos sai da cabeça, reflectimos sobre as nossas liberdades e questionamo-nos a nós próprios. 

 




 Um diálogo com Adriana Aboim  

Esta é a tua primeira encenação profissional. Como está a correr?

Adriana Aboim: Está a ser um trabalho muito intenso e interessante. Já tinha feito uma encenação no mestrado que fiz na Escola Superior de Teatro e Cinema e essa foi mesmo a minha primeira experiência de encenação, não ao nível profissional, mas a nível de Mestrado.

Neste novo trabalho, como fiz o texto e participo como actriz, não foi propriamente uma encenação minha no sentido real de encenação, porque como estava em palco, não conseguia estar totalmente fora. Acabou por funcionar de outra forma. Fiz mais direcção artística, as escolhas, as decisões passaram por mim, mas foi sobretudo um trabalho de co-criação com os outros intérpretes e com a Ana Lacerda que foi a directora de actores e no fundo a pessoa que esteve de fora a gerir. Por isto é que eu não chamaria neste caso uma encenação, mas uma co-criação com direcção minha. No fundo eu tinha uma concepção que lhes passei e a partir dessa ideia trabalhámos até chegar a um resultado. Foi uma experiência muito interessante e que gostei muito, sobretudo pelo trabalho desenvolvido também com os músicos, que vêm de uma área artística completamente diferente e que acho que se encaixaram muito bem no trabalho. Eles próprios fizeram exercícios de actores, muito ao nível das emoções, para depois os transportar para a música.

Então a música foi também surgindo ao longo do processo de criação?

AA: Há uma sonata de Shostakovich, para violoncelo e piano, que escolhemos no processo de ensaios e o resto das músicas são improvisações deles, que foram surgindo durante o processo criativo.

Porquê a decisão de encenar, de representar e de escrever o texto? O que surgiu primeiro?

AA: O que surgiu primeiro foi o texto. Eu comecei no teatro como actriz, mas sempre me interessei muito pela área da dramaturgia, da encenação. Sempre gostei do teatro no seu todo e nem sei bem de onde é que veio esta vontade de fazer tudo. Talvez fosse uma necessidade que eu tivesse e que começou exactamente pelo texto. Começou numa aula de um curso de escrita criativa que eu fiz na Faculdade de Letras, em que nos foi pedido para termos a ideia de uma história e para esboçarmos algumas páginas de uma peça, como exercício. Depois do curso acabado, decidi pegar nessa ideia e experimentar escrever uma peça e ver o que ia dar. Quando acabei o primeiro esboço tive imensa vontade de o pôr em prática, pô-lo em teatro, transformá-lo. Falei com pessoas minhas conhecidas da área, o Pedro, os músicos, a Ana Lacerda e começámos a pô-lo de pé.

Foste tu que propuseste apresentar aqui no Teatro Taborda?

AA: Sim, falei-lhes nisso e eles tiveram grande abertura. Já tinha apresentado a peça de final de Mestrado aqui, em Junho deste ano, e este acolhimento que eles fazem é óptimo para pessoas que estão a começar.

Como foi feita a selecção das pessoas que estão a trabalhar contigo?

AA: O Pedro é um actor cujo trabalho conheço, também porque andou comigo na Escola Superior, assim como a Ana Lacerda. O pianista é meu irmão e quando surgiu a ideia de juntar dois músicos, criando um diálogo paralelo com a acção, inevitavelmente tinha um músico ao meu lado, tendo logo surgido a ideia de trabalhar com ele. A Carolina é uma rapariga que nos foi apresentada e que aderiu logo à ideia e começou a colaborar connosco.

Como tem sido a reacção do público?

AA: Acho que está a ser positiva, as pessoas têm gostado muito.

Quais eram as tuas expectativas para este projecto?

AA: Eu queria sobretudo que fosse qualquer coisa que funcionasse como um desafio para mim e que se concretizasse em algo que fizesse sentido e que chegasse às pessoas que nos vêem. Que de alguma maneira lhes tocasse, que lhes dissesse qualquer coisa. Também não gosto de criar grandes expectativas, gosto de ir vendo a coisa à medida que vamos construindo.

Até porque neste caso, como co-criação, foi surgindo?

AA: É verdade, eu tinha uma ideia muito forte, mas no fundo foi uma co-criação no sentido em que eu não estive de fora, ou seja, nem todas as escolhas foram minhas. Eu tinha uma ideia muito forte do que queria e tentei passá-la às pessoas que trabalharam comigo.

E que ideia era essa?

AA: A ideia era trabalhar esta história, que é sobretudo uma história de amor, um bocado conturbada, com dois actores e dois músicos num diálogo paralelo, ou seja, que a música não surgisse como um acompanhamento musical da peça, mas que esses dois músicos fossem também dois intérpretes, no fundo como dois personagens da peça. Por isso são também um homem e uma mulher, são dois instrumentos diferentes, como mais duas vozes. No fundo queria criar uma peça a 4 vozes, em que há uma voz feminina, uma voz masculina e dois instrumentos, dois intérpretes que falam com música e dois intérpretes que falam com palavras, criando-se assim um diálogo entre os quatro. Acho que isso foi o nosso maior desafio: como conjugar música, palavra, como passar isso, como criar contrastes, ou como levar a música de encontro às emoções. Queríamos sempre que fosse caminhando lado a lado. Isso era a minha principal ideia. Depois queria também que fosse feito num espaço intimista. A acção passa-se toda num quarto e eu queria que esse quarto fosse muito próximo do público. O público entra pela porta que depois vai ser a porta do quarto, por onde entram as personagens, dando a ideia de que o público está dentro desse quarto, tão próximo dos actores quanto isso. Também tinha outra ideia, que a peça bebesse muito do trabalho emocional entre os intérpretes. A partir destes pressupostos e com a ajuda de todos os participantes fomos criando.

 

A tua abordagem ao teatro, pelo menos nesta peça, é uma abordagem naturalista. Escolheste-a pela história em si ou sentes que é a tua forma de trabalhar o teatro?

AA: Eu ainda estou a descobrir qual a minha abordagem, o meu caminho, mas, por exemplo, um dos exercícios que fiz no mestrado, jogava muito com uma linguagem realista de texto, mas também com uma linguagem simbólica, de sinais. Aqui, acho que é a música que dá esse contraste, que corta esse realismo ou naturalismo, que vem dar o lado simbólico, abstracto.

Tens alguma ideia do que vais fazer a seguir?

AA: Neste momento ainda não sei, mas talvez vá dirigir o grupo de teatro da Universidade Nova, que foi uma faculdade onde já andei há muito tempo. Surgiu este convite e acho que vou agarrá-lo, porque me parece bastante interessante trabalhar ao longo de um ano com pessoas que ainda não têm muita experiência teatral, mas que são pessoas interessadas à partida, porque há um grande amor àquilo que se faz. São estudantes que à noite vão fazer teatro porque querem. Esse lado fascina-me. Tenho esse projecto, tenho de escrever a minha tese de mestrado, que pode partir de um trabalho prático, ou deste ou do trabalho da Nova, e vou continuar a dar aulas de expressão dramática.

ANA MARIA DUARTE

Fotografias de João Penedo/ João Abel Aboim  

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed. 03.10.2008)

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