quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Tudo o que é bom acaba rápido


Coreografias metafóricas

O Teatro Camões recebeu a estreia de dois novos bailados, esta semana. Na abertura da Nova Temporada 2008/09, a Companhia Nacional de Bailado desafiou dois coreógrafos contemporâneos para criarem duas obras originais com bailarinos da CNB: o português Rui Horta e o romeno Edward Clug. "Come together" marca a estreia do coreógrafo Rui Horta na criação para o elenco desta companhia. "Four reasons", de Edward Clug, completa o programa. Ambos contam com música original e ao vivo, uma mais-valia que só aumenta a ideia de “imperdível”. As coreografias podem ser vistas em escassos quatro dias. Até sábado portanto. Ainda pode ver hoje às 21h ou amanhã às 16h e às 21h.


A unicidade destas duas coreografias é marcante. Em “Come together”, Rui Horta trabalha uma das suas temáticas mais marcantes - a posição do indivíduo na sociedade e aquilo que representa. Concebida para um elenco de 12 bailarinos, esse foi um dos “problemas”, no sentido de diferença, no processo de criação, uma vez que está habituado a trabalhar e a criar num ambiente mais intimista, com núcleos criativos mais pequenos. O próprio coreógrafo entendeu este desafio e apostou nele, vivendo-o em grande gozo, apesar de sentir esta diferença de uma forma antagónica relativamente ao que está habituado a fazer. Rui Horta sai da sua cápsula e explora este universo fora da sua escala mais pessoal.


“Trabalhar com a CNB é, de alguma forma uma metáfora desta mesma contradição, um desafio que eu abracei com entusiasmo. Acredito que a única forma de resolver esta equação é a ideia de colaboração e trabalho de equipa, onde o próprio grupo é comunicante e criativo. Tudo se joga no dia-a-dia, no estúdio de ensaio, e na capacidade de, em conjunto, encontrarmos estes mesmos espaços de criatividade e jubilação.” Este texto do coreógrafo possibilita-nos a tomada de consciência daquilo que procura quando aborda a relação do indivíduo com a sociedade. A equação de que fala é a do espaço singular do ser humano, no contexto singular em que vive ele próprio, inserido num conjunto. A ideia de conjunto é não só o “grupo”, ou os vários grupos sociais, económicos e culturais, mas também a sociedade enquanto organização e enquanto conjunto emocional. Como funciona a relação emocional e organizacional do indivíduo dentro desta máquina? De que forma somos condicionados pelo mainstream, pelas tendências, pelos limites que nos são impostos, ou que são apresentados como naturais? Como é que esta “organização” condiciona as nossas decisões e reduz as nossas escolhas e liberdades? De que forma podemos continuar a estimular a nossa originalidade e criatividade, que afinal é esperada, mesmo por aqueles que nos limitam?


A posição do indivíduo, com o seu espaço de identidade, no seio de sociedades profundamente organizadas, é um tema que atravessa recorrentemente o trabalho de Rui Horta. Além dos bailarinos são usados outros elementos em palco: o vídeo e a música. O vídeo volta a ser explorado em cena, dando "corpo" ao cenário e à iluminação.
A coreografia conta com música original de Tiago Cerqueira e tem a particularidade de, em determinado momento, ser co-criada por Mário Franco, um dos bailarinos da companhia, que também é contrabaixista e que a interpreta ao vivo. "Fui à procura desse momento de autenticidade em que numa companhia de bailado há também um músico, que, ao longo desta peça, sobressai em várias personalidades fortes".


Quanto à peça musical "Four reasons", que dá o nome à criação de Edward Clug, é uma composição de quatro sonatas para piano e violino da autoria do esloveno Milko Lazar especialmente encomendada para esta nova criação coreográfica. A música é interpretada ao vivo pelo próprio compositor e pela violinista Jelena Zdrale. A partir da interacção dos dois músicos com os oito bailarinos, a peça vai-se desenvolvendo, como se fosse um desfile surrealista, construído por imagens que quebrem a realidade a que estamos habituados, pelas diferentes dimensões e contemplações. Neste dialogar de movimento e som são explorados espaços comuns, permitindo aos intervenientes, bailarinos e músicos, reflectir e criar aí um momento de intimidade, relacionado com as suas experiências espontâneas em palco.
O ambiente e o espaço são moldados pela dança, pelos corpos dos bailarinos. Edward Clug refere que a coreografia "se desenvolve como se fosse um desfilar de vários quadros surreais que quebram a nossa realidade e levam a nossa mente para algures, flutuando através destes quadros".

Ambas as peças nos transportam para reflexões sobre a realidade e a sociedade. Uma será mais crua, explorando a relação entre o indivíduo e o contexto em que se insere; a outra funciona mais como viagem ao surrealismo, às emoções espontâneas que se criam em palco.

ANA MARIA DUARTE

Artigo publicado no Jornal Semanário (ed.24.10.2008)

Legenda da imagem: Bailado Four Reasons; créditos de Rodrigo de Souza

Sem comentários: