“As Criadas” por João Garcia Miguel
A peça “As Criadas” foi apresentada no Centro Cultural de Belém durante 6 dias. Tendo saído de palco no dia 20 de Setembro, este espectáculo trouxe uma nova abordagem ao texto de Jean Genet, que no final da primeira metade do século XX causou tanta polémica pela sua forte crítica à hierarquia das classes sociais e às relações de escravatura. João Garcia Miguel misturou o teatro com o audiovisual, num palco repleto de boas soluções de encenação e de cenografia.
João Garcia Miguel, Miguel Borges e Anton Skrzypiciel já tinham trabalhado juntos e queriam fazê-lo de novo. Procuraram uma peça em que pudessem contracenar de novo e encontraram “As Criadas” de Jean Genet, que lhes dava o desafio de representar papéis femininos. Contudo, o desafio principal era a exploração do texto, do sufoco que representa um discurso que avança sobre a relação entre dominados e dominadores, da hierarquia entre escravos e senhores.
O facto dos actores surgirem a fazer de mulheres não indica qualquer tipo de “travestismo”, é antes uma opção de encenação, como foi o facto de se usar o texto de uma forma diversa, já que o encenador o adapta a uma versão trilingue: português, francês e inglês. As três línguas aparecem, tal como as personagens, em confronto. Esta opção aumenta a tensão já existente na peça pela sua própria confusão, mas também representa a evolução de um mundo social onde existe a necessidade de expansão de linguagens. A mistura das línguas propicia o toque nos limites, já que a linguagem é um meio de comunicação, mas por vezes pode ser entendida como uma barreira. Garcia Miguel pretende provocar esses limites.
Quando estreou em 1947, a peça suscitou grande polémica, pela sua temática versar, de alguma forma, sobre a escravidão. O texto critica a moral burguesa da época, despindo todas as relações entre as madames e as suas respectivas criadas, acendendo um foco de luz sobre a hipocrisia das estruturas sociais. Apesar de esta linha não se perder na encenação de Garcia Miguel (esta vertente de background histórico está sempre presente), o encenador traz uma abordagem contemporânea ao texto, pretendendo valorizar a dimensão de prisão contemporânea onde vive a criadagem. Desta forma, retira-lhe a característica de luta de classes, mas não apaga o seu teor político, mantendo a ideia da necessidade de libertação do ser humano, difícil de alcançar.
O espaço cénico transmite, nesta encenação, o sufoco do próprio texto. Em palco uma tela de grandes dimensões, onde são projectados desenhos numa relação simbólica com o texto. Com um cenário em três tons: vermelho, preto e branco e um palco repleto de alguidares, que são movimentados pelos actores transformando o espaço, o vídeo fica envolto nestes limites, transmitindo imagens e palavras soltas sempre a preto e branco, sendo que no fim da peça o vermelho “rasga” a projecção. A movimentação dos alguidares parece muitas vezes coincidir com os ciclos do texto, antevendo sempre o início ou o término de alguma coisa.
A encenação de Garcia Miguel é inspirada pelo balanço entre a comédia e o sacrifício existente no próprio texto, irónico e contraditório. No texto de Genet, as irmãs Solange e Claire são as criadas que se divertem a imitar e a criticar a madame, que planeiam assassinar. Este texto volta a aproximar o encenador do tema do poder da morte. Nas suas próprias palavras: “Aqui a morte é multiplicada e omnipresente nas suas formas e presenças: a morte como uma metamorfose do ser em busca de si e dos seus limites; a morte como um atrevimento uma provocação que leve a exceder as próprias forças em busca de uma paz que não se deseja; a morte como um ideal de transformação que dá extensão aos movimentos de inquietação da imaginação; a morte como uma imagem que transporta a consciência de si; a morte como desejo de afrontar aquilo que mais se teme; a morte como expressão de um outro que habita dentro de nós e que desconhecemos; a morte como uma união com a nossa própria imagem.”. A peça explora a solidão, as relações de amor-ódio existentes nessas hierarquias, avançando numa doçura-ácida num discurso que envolve revolta e vergonha. Solange e Claire vão jogando num teatro dentro do teatro, trocam de personagens várias vezes, encenam e ensaiam a morte da madame, mas também a sua própria morte, falam da sua condição de prisioneiras e do momento da libertação. “Falam até se sentirem vazias” (às vezes até o despertador, que avisa da chegada da madame, tocar, num lado trágico-cómico), pois afinal elas estão numa prisão, a própria das criadas, a da submissão e do medo.
Este jogo criado pelas criadas permite visualizar o processo de transformação, da relação dos actores com os objectos. O discurso muitas vezes vai ficando mais ténue, serve apenas para atingir o resultado do espectáculo.
A peça “As Criadas” foi apresentada no Centro Cultural de Belém durante 6 dias. Tendo saído de palco no dia 20 de Setembro, este espectáculo trouxe uma nova abordagem ao texto de Jean Genet, que no final da primeira metade do século XX causou tanta polémica pela sua forte crítica à hierarquia das classes sociais e às relações de escravatura. João Garcia Miguel misturou o teatro com o audiovisual, num palco repleto de boas soluções de encenação e de cenografia.
João Garcia Miguel, Miguel Borges e Anton Skrzypiciel já tinham trabalhado juntos e queriam fazê-lo de novo. Procuraram uma peça em que pudessem contracenar de novo e encontraram “As Criadas” de Jean Genet, que lhes dava o desafio de representar papéis femininos. Contudo, o desafio principal era a exploração do texto, do sufoco que representa um discurso que avança sobre a relação entre dominados e dominadores, da hierarquia entre escravos e senhores.
O facto dos actores surgirem a fazer de mulheres não indica qualquer tipo de “travestismo”, é antes uma opção de encenação, como foi o facto de se usar o texto de uma forma diversa, já que o encenador o adapta a uma versão trilingue: português, francês e inglês. As três línguas aparecem, tal como as personagens, em confronto. Esta opção aumenta a tensão já existente na peça pela sua própria confusão, mas também representa a evolução de um mundo social onde existe a necessidade de expansão de linguagens. A mistura das línguas propicia o toque nos limites, já que a linguagem é um meio de comunicação, mas por vezes pode ser entendida como uma barreira. Garcia Miguel pretende provocar esses limites.
Quando estreou em 1947, a peça suscitou grande polémica, pela sua temática versar, de alguma forma, sobre a escravidão. O texto critica a moral burguesa da época, despindo todas as relações entre as madames e as suas respectivas criadas, acendendo um foco de luz sobre a hipocrisia das estruturas sociais. Apesar de esta linha não se perder na encenação de Garcia Miguel (esta vertente de background histórico está sempre presente), o encenador traz uma abordagem contemporânea ao texto, pretendendo valorizar a dimensão de prisão contemporânea onde vive a criadagem. Desta forma, retira-lhe a característica de luta de classes, mas não apaga o seu teor político, mantendo a ideia da necessidade de libertação do ser humano, difícil de alcançar.
O espaço cénico transmite, nesta encenação, o sufoco do próprio texto. Em palco uma tela de grandes dimensões, onde são projectados desenhos numa relação simbólica com o texto. Com um cenário em três tons: vermelho, preto e branco e um palco repleto de alguidares, que são movimentados pelos actores transformando o espaço, o vídeo fica envolto nestes limites, transmitindo imagens e palavras soltas sempre a preto e branco, sendo que no fim da peça o vermelho “rasga” a projecção. A movimentação dos alguidares parece muitas vezes coincidir com os ciclos do texto, antevendo sempre o início ou o término de alguma coisa.
A encenação de Garcia Miguel é inspirada pelo balanço entre a comédia e o sacrifício existente no próprio texto, irónico e contraditório. No texto de Genet, as irmãs Solange e Claire são as criadas que se divertem a imitar e a criticar a madame, que planeiam assassinar. Este texto volta a aproximar o encenador do tema do poder da morte. Nas suas próprias palavras: “Aqui a morte é multiplicada e omnipresente nas suas formas e presenças: a morte como uma metamorfose do ser em busca de si e dos seus limites; a morte como um atrevimento uma provocação que leve a exceder as próprias forças em busca de uma paz que não se deseja; a morte como um ideal de transformação que dá extensão aos movimentos de inquietação da imaginação; a morte como uma imagem que transporta a consciência de si; a morte como desejo de afrontar aquilo que mais se teme; a morte como expressão de um outro que habita dentro de nós e que desconhecemos; a morte como uma união com a nossa própria imagem.”. A peça explora a solidão, as relações de amor-ódio existentes nessas hierarquias, avançando numa doçura-ácida num discurso que envolve revolta e vergonha. Solange e Claire vão jogando num teatro dentro do teatro, trocam de personagens várias vezes, encenam e ensaiam a morte da madame, mas também a sua própria morte, falam da sua condição de prisioneiras e do momento da libertação. “Falam até se sentirem vazias” (às vezes até o despertador, que avisa da chegada da madame, tocar, num lado trágico-cómico), pois afinal elas estão numa prisão, a própria das criadas, a da submissão e do medo.
Este jogo criado pelas criadas permite visualizar o processo de transformação, da relação dos actores com os objectos. O discurso muitas vezes vai ficando mais ténue, serve apenas para atingir o resultado do espectáculo.
O encenador cria uma espécie de nova linguagem teatral, através da repetição, presente não só no discurso (por exemplo, os actores repetem várias frases que são ditas nas três línguas), mas presente na música que vai surgindo em diferentes versões, na movimentação do cenário e por vezes no vídeo. Contudo, esta nova linguagem não se torna repetitiva e elas continuam a jogar aquele “jogo idiota” que no fundo nos possibilita compreender todo o espectáculo.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário - Setembro (ed.26.09.2008)
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