A arte e a representação que hão-de vir
Mathilde Monnier e Maria La Ribot
"Gustavia" é a união de duas coreógrafas com dois percursos diferentes: Mathilde Monnier e Maria La Ribot. A união dá-se como um casamento em torno de um ponto comum: a reflexão sobre as questões do futuro da arte e da representação. Gustavia é nome de mulher, mas acima disso é um nome artístico fictício. A coreografia é assinada por Mathilde e Maria e interpretada por elas mesmas, num universo que fala de temas que ultrapassam a dança: a mulher, a morte, o teatro, a representação de si, o artista e o seu papel. O palco da reflexão é a Culturgest, nos dias 3 e 4 de Abril, às 21h30.
O espectáculo estreou no festival de dança de Montpellier de 2008 e junta duas coreógrafas. O trabalho de La Ribot passa por um sistema que lhe permite pesquisar, desenvolver e questionar os limites temporais, espaciais e conceptuais da dança, onde usa um vocabulário exigente, com humor e ligações geométricas. Desenvolve espectáculos que ligam as artes vivas, a performance e as artes gráficas, tendo vindo a demonstrar um interesse pelo vídeo, criando peças filmadas em directo do ponto de vista do corpo em movimento.
Mathilde Monier é uma coreógrafa de decisões artísticas de impacto. Nos anos 80 trabalha com Jean-François Duroure, desenvolve um trabalho de confronto, seja através do texto, dos ambientes criados, do movimento da arte. Um dos temas que mais tem trabalhado é o do prazer, da libido na dança. O ano passado apresentou em Portugal “Tempo 76”, criado em torno da noção de uníssono.
Embora com percursos profissionais muito distintos, conheceram-se em 1987 numa apresentação de Mathilde na terra natal de Maria, Madrid. A vida cultural fervilhava com festivais. A partir de 1999 a relação estreita-se e as trocas tornam-se mais frequentes até culminar com a decisão de fazer Gustavia.
As duas profissionais juntam-se numa reflexão comum sobre as questões do futuro da arte e da representação, tomando como base o burlesco clássico, que possui técnicas de troca de papéis e de uma linha de “toca e foge”.
“O burlesco é a arte de transformar a incompetência em competência, pode surgir do excesso de palavras, ou da sua ausência. O burlesco atravessa não só o cinema, mas também o palco, a performance, as artes plásticas. O burlesco do corpo apoia-se no esforço gratuito, na repetição e no acidente. O que é legível no burlesco está oculto na dança, uma vez que esta, na sua essência, não tem nada, ou quase nada, de cómico.
Não é um género, mas permite a utilização de práticas e de maneiras de pensar próprias. Através de uma utilização indirecta dos instrumentos do burlesco, Gustavia procura falar livremente do seu métier: desvios, inquietações, catástrofes e alegrias da relação entre a arte contemporânea e a vida.
Há um enorme paralelismo entre Gustavia e os filmes de cinema mudo. Aliás, o nome Gustavia é inspirado n’Os Palhaços de Fellini. Monier e La Ribot recorrem a elementos cómicos que provocam riso nas plateias. O que as moveu no início deste projecto foi esse universo burlesco, a ideia de mulher, a curiosidade, a história, o teatro e a dança. Repetição, exagero e acidente foram palavras de ordem no processo criativo. A construção passou pela improvisação, pela continuidade do trabalho de ambas, ora uma, ora outra, pegando naquilo que cada uma dava e transformando, continuando, questionando, exagerando, fragmentando, desconstruindo, para construir, para criar. O resultado é um dueto em forma de solo partilhado, a figura de Gustavia desdobra-se.
Em frente a um microfone, botas, cuecas e camisolas pretas. Elas murmuram, cerram lábios e olhos, queixam-se, suplicam, oram, lamentam. Trabalham sobre movimentos idênticos, linhas de mimetismo, passando pelo cómico, num equilíbrio mútuo, brutal.
Na última cena do espectáculo elas estão lado a lado, falam uma por cima do outro, usando gestos e onomatopeias repetitivas, falam da mulher, falam dos próprios movimentos que fizeram antes. Falam do futuro.
O palco é coberto de tecidos negros, onde elas jogam com a repetição, com a acumulação, com o ilusionismo e a queda. Gustavia é uma só mulher, em duas, num palco, num só dueto solista.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (03-04-2009)
Sem comentários:
Enviar um comentário