terça-feira, 28 de abril de 2009

Estaremos fechados no nosso próprio corpo?

“L’Apprentissage – Dans la Main d’Isolina”
A reaprendizagem de Jean-Luc Lagarce



O texto é denso. Jean-Luc Lagarce escreveu, dois anos antes da sua morte, sobre o seu estado pós-coma e a sua recuperação. À partida parece dramático, mas é mais do que isso, é a exploração da estética de uma situação de contínua e lenta reaprendizagem do corpo depois de um período em estado de coma causado pela sida. “L’Apprentissage” é o nome do texto, que dá nome ao espectáculo “L’Apprentissage – Dans la Main d’Isolina” e é também a base para o espectáculo assinado por Fabrizio Pazzaglia. Dias 29 e 30 de Abril, na Culturgest.

Jean-Luc Lagarce trabalhou essencialmente em teatro, como escritor, comediante ou encenador, sendo hoje em dia um dos autores mais levados a cena, talvez pela simplicidade das suas palavras, a profundidade do seu pensamento e a originalidade da sua sintaxe, ou, provavelmente, por tudo isto. No final dos anos 70 cria uma companhia de teatro, “La Roulotte” onde apresenta os seus primeiros textos e é no final dos anos 80, através de encenadores como Berangère Bonvoisin e Hans Peter Cloos, que o seu teatro começa a sair do pequeno círculo regional da companhia e começa a interessar Paris, nomeadamente através da acção do “Theatre Ouvert”. Em 90 já muitos encenadores pegam nos seus textos. A partir daí passa a ser um nome constante no teatro francês e noutros países da Europa. Em Portugal já esteve em cena, através de outros textos, pelos Artistas Unidos.
O seu legado de obras passa por textos teatrais, ensaios e prosa. “L’Apprentissage”, que data de 1993, insere-se na prosa. “Já estou aqui há vários dias – contam-me mais tarde – já aqui estou há vários dias, quando abro os olhos. Abro os olhos. Ou já há vários dias que abro os olhos antes mesmo de o saber, vários dias depois de ter aberto os olhos e no primeiro dia em que me apercebo de os abrir.Abro os olhos.”.
Como autor, Jean-Luc Lagarce centra os seus textos no discurso fluído e frontal, onde interroga a capacidade de cada um em dizer verdadeiramente o que sente. Vemos isso em “L’Apprentissage”, não há censura nem pudor, despe-se de vergonha emocional e física, é transparente, partindo para aquilo que normalmente não é dito. No texto oscila de homem a criança, máquina ou saco de papel, apercebendo-se da sua importância ao ver-se nesta situação. Reaprende a usar o seu corpo e essa descoberta é aqui descrita e explorada. Uma escrita delicada, sofrida, dolorosa. Basta-nos aquele excerto para perceber o domínio da escrita que Lagarce possui, assim como o seu teor teatral.


Agora será dança, dança contemporânea. Fabrizio Pazzaglia pegou neste texto e encenou-o. Agora dança-o. O bailarino, intérprete de Olga Roriz noutras peças, debruça-se sobre esta reaprendizagem do corpo após a saída de um estado de coma, tendo em conta o seu domínio físico e a sua poderosa teatralidade. O espectáculo centra-se na fragilidade que se torna força, ao ver-se remetido para esta situação. Explora-se a construção da multiplicidade de personagens em palco e o trabalho e uso do espaço teatral.
Em “L’Apprentissage”, Fabrizio utiliza duas argolas de ginástica, usando-as na dança como se fosse uma actividade física, em exercícios repetidos. No texto vemos a mesma repetição, a enumeração dos sentidos, dos movimentos, ou acções para que pareçam mais reais, talvez para lhe dar força para acreditar neles como sendo relevantes para o seu desenvolvimento. O corpo é frágil, é reflectida força. Balança-se entre a busca de um sentido e uma credibilidade qualquer na recuperação. No entretanto é melhor praticar. Em palco Fabrizio, sozinho, em recuperação, e um técnico que monta as argolas, permanecendo no seu distanciamento, interagindo indirectamente com a personagem principal.
O cenário é caracterizado pelo minimalismo, apenas revelando aquilo que nos vai centrar na sua reaprendizagem, espaço que, como ele, vai crescendo e progredindo.
A peça e, obviamente, o texto podem suscitar um processo reflectivo sobre a liberdade, sobre a fragilidade do corpo, sobre a liberdade que temos em momentos de dependência, mesmo que essa seja a do nosso próprio corpo.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (24-04-2009)

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