A continuidade da aproximação ao universo do conflito
O Teatro Carlos Alberto, no Porto, recebeu o espectáculo “Os Europeus”, de Howard Barker, com encenação de Rogério de Carvalho. Foi a primeira adaptação desta obra realizada em Portugal, num espectáculo que valia de antemão pelo texto, mas também pela continuidade da incursão de Rogério de Carvalho pelo universo de Barker.
Howard Barker é o autor do “teatro de catástrofe”, que assenta no conflito, na dor e na crueldade, no êxtase da tragédia, explorando muitas vezes os temas da violência, da sexualidade, do desejo de poder. O “teatro de catástrofe” toma como elemento essencial o indivíduo, a sua capacidade individual, em conflito com o colectivo. É neste momento de confronto que Barker encontra a beleza do teatro. O dramaturgo rejeita, aliás, a ideia de que o público deve partilhar uma única resposta relativamente àquilo que acontece em palco e por isso as suas obras fragmentam as repostas, quase que obrigando cada individuo a explorar sozinho aquilo que sente relativamente ao que recebe do espectáculo. O caminho é pessoal, e muitas vezes longe da felicidade, porque essa só faz sentido se for de crescimento, afastada da procura e da usurpação do poder, do reconhecimento público.
Escrito em 1990, “Os Europeus” é um texto que nos integra neste “teatro de catástrofe”. A peça passa-se num contexto histórico muito marcado, o da última ofensiva turca na Europa. Estamos em Viena, devastada pelos turcos, no ano de 1683. Barker parte muitas vezes de eventos históricos para uma complexidade temática mais abrangente e é isso que sentimos também neste texto. Era importante trazê-lo a palco. Francisco Frazão traduziu-o e Rogério de Carvalho, que já tinha dirigido Possibilidades (1998), Tio Vânia (2000) e Mãos Mortas (2006), do mesmo autor, com a companhia As Boas Raparigas, levaram-no a palco. E levam-no pela sua pertinência enquanto texto, e pela sua aproximação à Europa de hoje, devastada economicamente, onde também se vive a questão da Turquia.
O texto cria tensões constantes, centradas no trabalho de actor, contudo, a técnica dos onze actores que participaram no projecto não correspondeu ao que o texto pedia, podendo ser um espectáculo ainda mais forte do que aquilo que foi. A acção da peça é muito intensa e os actores vivem situações de violência psicológica, mas muitas vezes sentimos o caminho que estão a percorrer para chegar a determinado ponto de representação. Sentimo-lo, por exemplo, na cena de Katrin, a falar da sua experiência. A vítima expõe publicamente a sua dor numa tentativa de impedir que o sofrimento se dilua nas tentativas de reconciliação, mas vemos a actriz a tentar atingir esta dor, bloqueada por algo que não lhe permite avançar no palco. A violação desta mulher cria o paralelismo de uma invasão do próprio território, pelos turcos, com a possibilidade de reconciliação, levando-nos à ideia de integração para o crescimento, mas a reconciliação e o esquecimento são em si mesmas formas de opressão e de sofrimento individual em nome de uma colectividade. É este o discurso de Barker e que a encenação de Rogério de Carvalho permite viver.
Neste espectáculo o padre deixa de ser padre e as burguesas prostituem-se. Não existem limites. E a reflexão espicaça-se: porque é que o padre é uma esperança na mudança, no conflito? Porque é que exploramos a dor de um parto em palco? A perturbação dessa cena vem, não da própria apresentação do parto no palco, mas da catástrofe da heroína.
Este não é um espectáculo de recepção fácil. Aliás os textos de Barker, por assentarem no conflito e na dor, foram bastante mal recebidos, pelo desconforto que criam, tendo sido esta a razão porque criou a Wrestling School, criando o seu próprio espaço. No Porto encontrou o seu lugar, através das encenações de Rogério de Carvalho.
Este texto está muito próximo do nosso tempo e faz agitar os pequenos nichos de público disponíveis para receber este tipo de discurso. A esperança e a busca da felicidade são apenas distracções disfarçadas de fins, obstáculos ao progresso dos indivíduos. “Que se foda a felicidade!”. Que desça o Porto à capital para poder incomodar também por aqui.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado Jornal Semanário (05-06-2009)
Créditos da Imagem: João Tuna
1 comentário:
que desça mesmo à capital um espectaculo que faz falta no panorama teatral português, onde a procura da felicidade e o cair em graça dos novos e velhos "artistas" da nossa praça parecem ser os motivos principais da expressão teatral em Lisboa.
a reflexão que deste espectaculo advém é essencial para quem vê na vida mais do que o conformismo de um dia atras do outro.
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