segunda-feira, 9 de março de 2009

A arte como resposta à ideologia


Deus. Pátria. Revolução
Teatro musical com repertório ultrapassado

“Deus.Pátria.Revolução” resulta de uma recriação musical de um vasto repertório que marcou o período da ditadura salazarista e o período pós 25 de Abril. É uma mistura de temáticas, num universo umas vezes erudito, outras popular. O espectáculo é uma co-produção do Centro Cultural de Belém, do Teatro Nacional de São João e do Ar de Filmes. É agora apresentada no Pequeno Auditório do CCB, a 28 de Fevereiro, 1 e 2 de Março.

Um espectáculo de teatro musical da autoria de Luís Bragança Gil, que assina também a direcção musical e cénica. Luísa Costa Gomes é responsável pela dramaturgia, e a dupla, depois de divertidos recitais satíricos de música e poesia, como foi o caso de “Libentíssimo” e “Libentíssimo 2”, estreados em 1999 e em 2002, respectivamente, no CCB, apresenta uma nova criação.
Hinos, marchas, canções portuguesas de cariz fascista juntam-se a outras de timbre revolucionário ou religioso, numa viagem pelos diversos géneros musicais, formando um mosaico de imagens de Portugal. Este não pretende ser um espectáculo revivalista, nem apresentar um medley com as “Melodias de Sempre”, mas “Deus.Pátria.Revolução” procura trazer para um lugar contemporâneo, um repertório considerado ultrapassado e trabalha sobreposições de estilos musicais, que vão dos hinos da Mocidade Portuguesa às canções da resistência, do nacional cançonetismo às canções de Abril.
A história é esta: Luis Bragança Gil ouviu o ciclo “Marchas, danças e canções” de Fernando Lopes-Graça e surgiram-lhe uma série de questões. “Na altura, enquanto compositor, muitas interrogações invadiram o meu pensamento. O que acontece à Arte quando tem de cumprir um programa, uma ideologia? Até que ponto os modelos musicais das diferentes ideologias são irremediavelmente os mesmos, dada a sua eficácia? Será que escrever música ao serviço de uma ideologia corresponde realmente a um gesto de autenticidade artística? Será possível voltar a interpretar e ouvir essas músicas quando o contexto político e social mudou radicalmente? Como poderão hoje fazer sentido as palavras musicadas de hinos e canções que se referem a realidades que já não existem? Terá algum interesse?”
A partir de uma pesquisa que realizou, que passou pela investigação do espólio da Mocidade Portuguesa depositado na Torre do Tombo e pela recolha de partituras e de bibliografia sobre o regime do Estado Novo de Salazar, ao mesmo tempo que iniciava a investigação para a sua tese de mestrado subordinada ao tema “Canção da revolução entre 1960 e 1985: Tipologias Musicais”, que o levou a estudar todo o repertório de alguns cantores de intervenção dessa época, chegou a um novo bloco de questões: “Como se explica que todo um repertório retrógrado de propaganda fascista que todos os meninos e meninas deste país foram obrigados a aprender possa, ainda hoje, ser cantado alegremente tanto em privado, como em festas? Se deixámos de ouvir publicamente este repertório, que anteriormente foi cantado por tanta gente nas grandes manifestações de massas, fascistas ou revolucionárias, para quê desenterrá-lo agora, dar-lhe novamente voz, ainda por cima num palco?”
A partir daí o desafio estava lançado. O desejo de revisitar este espólio e estas histórias musicadas, sem cair numa interpretação histórico-musicológica era o mote desta criação. O que deu norte à dramaturgia de Luísa Costa Gomes foram as músicas, é aí que está toda a origem. Luís Costa Gomes afirma a propósito do procresso dramatúrgico: “Procurou fundamentalmente duas coisas: que a música falasse e que falasse (quase) sempre do nosso Portugal e dos nossos dias. Que a música mostrasse a sua força. Assim se foi criando uma espécie de história de Portugal em tempo de marcha, que se organiza em “quadros”, à maneira da revista à portuguesa; mas que procura as pontes, as ligações entre os sons, que ecoam e ressoam uns nos outros, uns contra os outros. “
O espectáculo assenta em diversas imagens, que nunca estão num só plano, existem diferentes visões e sempre passíveis de várias interpretações. Musicalmente os processos criativos são múltiplos. Uma colagem de músicas, numa recriação não só musical, mas também histórica e sociológica. Passa-se por sonetos de Camões, canções de José Mário Branco, José Afonso, hinos e outras ladainhas. A ver, como corre a revolução.

ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (27.02.2009)

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