Um processo colectivo, uma viagem estética e de emancipação
Ouve a tua Pelagea Vlassova
Na quinta-feira, dia 19 de Março, pelas 21h30, no Grande Auditório da Culturgest, terá lugar a estreia de A Mãe de Bertolt Brecht, com encenação de Gonçalo Amorim e música de Hanns Eisler, tocada ao vivo por João Paulo Esteves da Silva. O espectáculo será também apresentado nos dias 20 e 21, pelas 21h30, e no dia 22 pelas 17h00.
A Mãe não é encenada em Portugal há mais de 30 anos. Uma oportunidade para conhecer a história de Pelagea Vlassova, viúva de um operário e mãe de um operário. O background histórico é de crise, o período que antecede à Revolução Russa. Escrita por Bertold Brecht nos anos 30 e estreada em 1932, este era um espectáculo experimental. Agora volta a sê-lo.
Sobem a palco 10 actores: Bruno Bravo, Carla Galvão, Carla Maciel, Carloto Cotta, David Pereira Bastos, Mónica Garnel, Paula Diogo, Pedro Carmo, Raquel Castro e Romeu Costa, mas o projecto conta com muito mais contributos: música e vídeo completam o espaço cénico. Eles não são operários, como eram muitas vezes os grupos com quem Brecht trabalhava nas suas peças didácticas, mas são actores livres de modelos rígidos teatrais e de pensamento. Arriscam, improvisam, exploram-se a si e a este material que lhes foi concedido durante o processo de criação. Um processo colectivo, como numa fábrica em crise que entra em greve, partiram em residência para Guimarães, viram filmes, encontraram-se em palco praticamente todos os dias para experimentar coisas e pensar o futuro. Concluíram que o futuro só pode ser agora. Neste momento. Que pode existir uma Pelagea Vlassova em cada um de nós.
Falámos com Gonçalo Amorim (encenação) e Ana Bigotte (pesquisa dramatúrgica e apoio à direcção artística) no sentido de compreender esta visão de A Mãe.
Semanário: Quais as razões que te levaram à escolha de A Mãe?
Gonçalo Amorim: Escolhi A Mãe há dois anos. É certo que pode haver algumas ressonâncias com a crise mundial neste momento, ainda por cima porque Brecht escreve este texto em 31, com a Alemanha com a maior taxa de desemprego de sempre, e mais uma vez, agora, é a Alemanha a mais afectada na Europa.
Escolhia-a por várias razões. Principalmente por ser feita a partir da estrutura mínima, do núcleo familiar básico de uma família, da relação mãe-filho e por reflectir sobre opressores e oprimidos, um conflito constante e, parece que, perpétuo. Por outro lado, por ser uma viagem de emancipação, às vezes são as mães que se emancipam dos filhos para encontrar a felicidade.
Também porque as peças didácticas do Brecht, e esta é uma peça didáctica para ver, são peças de um período em que estava particularmente inspirado, escrevia muito rápido e criava muito. Todas as peças didácticas tinham música e eram estreadas em festivais de música experimental porque eram objectos difíceis de categorizar, e esses anos em que ele está a experimentar interessam-me particularmente.
Semanário: Foi esse experimentalismo que procuraste explorar também?
Gonçalo Amorim: A tal narrativa mínima permite-nos essa liberdade, criar também a nossa dramaturgia subterrânea. No inicio do trabalho propus à minha equipa que reflectíssemos sobre o futuro. Na altura tinha filmes na cabeça como o “Matrix” e andava à volta desses universos, mas depois acabámos por ir buscar outras referências cinematográficas ao longo do século XX, como o Pudovkin, o Kuhle Wampe, La chinoise, do Godard e o Opening Night, do Cassavetes. Vimos também a maneira do Brecht fazer, e pensamos o que poderia ser um corpo de 3000 e não sei quantos, em Marte.
Semanário: E o que é que é pensar o futuro?
Gonçalo Amorim: Pode ser básico, mas é fazer agora, é poder experimentar diferente todos os dias e ter uma margem de liberdade para o fazer. Isto acabou por ser o nosso reflexo do futuro, o nosso experimentalismo, por isso o espectáculo pode ser uma improvisação.
O futuro é agora, não só no palco, mas também em tua casa, transforma agora as coisas que achas que não estão bem e improvisa, com o teu património artístico e pessoal. Há um lado um bocado despretensioso, espero eu, ora se dança, ora se fala, não há um modelo teatral que seja o chapéu deste espectáculo. Acho que construímos uma viagem estética e de emancipação.
Ana Bigotte: Se chegávamos a um pensamento que se achava impossível, voltávamos às perguntas e à experimentação. Não vamos estar já cheios de preconceitos, vamos experimentar.
Semanário: Fala-se num dos textos de apresentação de “virar o presente e virar o teatro do avesso”, consideras que é uma peça de ruptura?
Gonçalo Amorim: Pondo-me de fora e tentando ser crítico, acho que não é uma peça de ruptura. Pode eventualmente ser de ruptura para mim enquanto encenador, ou para alguns dos artistas que estão aqui porque o processo foi longo e intenso, e fez-nos pensar muito como abordar o teatro e a nossa arte, a nossa vida. Acho que o objecto é fracturante porque põe em causa.
Semanário: Esperas que o público receba essa mensagem: “a ideia de mudar agora, no momento”?
Gonçalo Amorim: Eu não lhe chamaria mensagem, chamar-lhe-ia ressonância, porque faz-me muita confusão o teatro de mensagem, sigo antes um teatro comprometido, de fazer com quem está connosco. As matérias que se trabalham são amplas demais para conter uma mensagem, é quase uma bomba energética. Queremos antes mostrar inquietações, fazer com que cada um dos espectadores seja também um espectador emancipado, que olhe o objecto artístico, com opinião, para o tornar activo. Mais do que um teatro de mensagem, é um teatro de provocação, que enumera, que fala alto, que também fala baixinho, mas que fala e que não tem medo de dizer.
Ana Bigotte: Existe uma força colectiva para se mudar qualquer coisa. Não para ser uma tribo urbana ou um gueto artístico, uma força colectiva em que há velhos, desempregados, miseráveis e podem pôr as coisas de maneira decente.
Gonçalo Amorim: São novas formas colectivas de teimosia, não é tarde para pegares na trouxa e ir embora, para fazeres uma peça em tua casa, para fazeres o que te apetece.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (20.03.2009)
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