19 a 22 de Março na Culturgest
“ (…) Deus poderá condenar-te no dia do juízo, a chorar de vergonha, recitando de cor os poemas que terias escrito, tivesse sido boa a tua vida.”. Pensar e agir hoje. Improvisar no momento. Pensar o futuro e fazer agora. Esta era a proposta. “A Mãe” que já foi de Brecht, foi, hoje, deste colectivo, impulsionado por Gonçalo Amorim, e procurou criar novas formas de teimosia, propondo uma revolução: a de pensar e agir hoje.
A ideia de ver a mesma peça nas suas quatro apresentações em Lisboa (19 a 22 de Março) pode parecer estranha, mas possibilita uma visão daquilo que nos destacavam no processo: a existência de improvisação, o trabalhar com a energia do momento, o fazer agora, tal como se comunica neste espectáculo. “E o nunca transforma-se em hoje ainda!”.
Gonçalo Amorim mostrou-se mais do que um encenador, um criador do espaço para um pensamento artístico de futuro, em colectivo. Actores, cenário, figurinos, luz, vídeo e música dialogam num só espaço que certamente não deixou ninguém indiferente, independentemente do que causou, pela sua capacidade de manifesto provocativo.
Num cenário de Rita Abreu, com soluções muito criativas, “A mãe” de Brecht é dita de forma integral, sem cortes, mas com ecos que tomam proporções gigantes ao longo de 2h30 de espectáculo. O estrado de madeira dá-nos a estrutura do chão, mas também se transforma em portas, e tem esconderijos de onde saiem objectos para a cena e para os actores. As linhas verticais criadas por elásticos e cordas fazem o contra-peso. As ventoinhas de repente tornam-se em impressoras de uma tipografia ilegal, ou do chão sai uma quantidade inóspita de objectos que criam uma cena inspirada em Godard, ou uma fábrica, onde as sombras se misturam com as projecções de vídeo.
Sente-se, através do cenário, mas também da energia dos actores, que existe uma ocupação total do espaço. Os elementos, sejam eles a arrumação do espaço/cenário, a música, o vídeo, ou a luz, estão integrados, sem criar grandes choques e fazendo com que a peça tenha a cadência certa nos seus movimentos. Estes elementos funcionam como ecos do exterior, entrando em diálogo, correndo-se muitas vezes o risco de ter demasiada informação para o espectador, mas o interesse passa também por uma situação de escolha, de participação do público.
Fala-se de linhas orientadoras das personagens, mas sem marcações cerradas, e essa liberdade de improvisação de que também Vânia Rovisco fala num dos textos sobre o processo, sente-se, quando temos a possibilidade de ver o espectáculo mais do que uma vez. Vemos que consoante a energia que corre, surgem elementos de representação novos, surgem novas pessoas, quando vemos Gonçalo Amorim a saltar para palco e dançar com o elenco numa das cenas mais fortes, ou quando percebemos que também Vânia Rovisco decide participar activamente no espectáculo, no momento, criando uma imagem nova em palco, juntamente com as árvores dos camponeses, percebemos de facto o sentido.
Esta presença da improvisação, não consciencializada pelo público ao visionar singularmente o espectáculo, sente-se de outra forma: na tensão que se cria, na força desta liberdade, na urgência que nos acaba por contagiar. Mesmo sabendo e vendo que nem todos os actores se lançaram neste processo de improvisação em palco, essa tensão está lá e os rasgos de genuidade que, no percurso do espectáculo, vão surgindo permitiram-nos perceber a proposta e viver mais o experimentalismo de Brecht.
O espectáculo respira num todo, sem grandes cortes entre cenas, com um ritmo alucinante, oferecido também pela forma como os actores vão tendo um papel mais físico, ou apenas de presença, como é o caso da morte quando assumida à boca de cena e depois presente em corpo, no palco, ou dos corpos que vão caindo ou correndo pelo espaço. São quadros que se vão construindo de forma subtil que dão ainda mais força à voz da história que nos vai sendo dada à boca de cena, por Pelagea Vlassova.
Este colectivo tinha algo para nos dizer. E disse. É a arte que volta e faz reflectir o quotidiano. “Temei menos a morte e mais a vida que não satisfaz”.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (27-03-2009)
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