segunda-feira, 9 de março de 2009

Explorações da violência e auto-punição


Teatro da Garagem
Profundo Mar Azul

Integrado no ciclo “Try Better, Fail Better 09”, o espectáculo “Profundo Mar Azul” foi apresentado no Teatro da Garagem, entre 28 de Janeiro e 8 de Fevereiro. Interpretado por Carla Carreiro Mendes e Gonçalo Ruivo, com encenação de Maria Camões, o espectáculo baseia-se no texto de John Patrick Shanley, numa visão de uma nova encenadora, jovem, mas nem por isso pouco atenta à complexidade das relações humanas.

Num bar de Nova Iorque, no Bronx, Danny (Gonçalo Ruivo) e Roberta (Carla Carreiro Mendes) tentam viver de forma isolada do mundo, cumprindo rituais diários de auto-punição, através de existências vazias, solitárias e repletas de culpabilidade. O seu encontro parece fortuito, mas para quem não acredita em coincidências, percebe-se que eles tinham de se encontrar, para se tentarem resolver de alguma forma. A violência é muito presente neste espectáculo, em forma física e verbal é usada como forma de comunicação.
Tanto Danny, como Roberta parecem perdidos, traumatizados e agarrados a medos do passado. Ambos vivem num misto de culpa, de auto-punição, de vivência com fantasmas de relações familiares. Perdidos, encontram-se num bar e estabelecem uma ligação estranha. Aparentemente não têm medo um do outro e ligam-se de forma violenta e intensa, e durante o tempo que partilham, vivem amor, raiva, sonham com uma vida normal, o que quer que isso queira dizer. Imaginam um casamento, com arroz e a pureza do branco.
A origem destas explorações de violência e auto-punição está nos seus percursos, ele é um “animal”, resolve tudo partindo para situações de pancadaria, não conseguindo evitar um comportamento desequilibrado perante os primeiros obstáculos, até mesmo perante apenas a presença do “outro”, repetindo tantas vezes a ideia de que o chateiam. De facto Danny transmite intolerância. Procura um isolamento, mas na verdade confronta-se diariamente com o mundo que o rodeia. Não confia, não acredita.
Roberta vive assombrada pelo encontro sexual que teve com o seu pai, que lhe serviu na altura para o conseguir acalmar. Mãe a tempo parcial, divorciada, uma miúda, vive neste conflito familiar e com ela própria, por sentir que destruiu o seu núcleo (mesmo que ele já estivesse destruído anteriormente).
A partir de certo ponto, o desafio é complexificado através da sedução. Roberta leva Danny para sua casa e é no quarto dela que vivem o segundo acto. Se a primeira parte da peça é uma exploração dos medos, mais crua, desenvolvida através da violência e da raiva que espelham, na segunda parte, as inseguranças reflectem-se nas suas atitudes, na forma de viverem aquela noite. Sob a ideia de que também eles têm direito ao amor, à vida que consideram “simples” e “normal”, amam-se e vivem num universo diferente por uma noite. Partilham e entregam-se a essa simplicidade que não tocam há muito.
O último acto mostra a realidade do dia seguinte, o regresso dos medos de Roberta e a raiva de Danny por sentir que se deixou enganar pelo “teatro” de Roberta. Um dos momentos mais fortes da peça é a descoberta de que se Danny desculpar Roberta, se a fizer acreditar que já foi punida o suficiente, poderá libertá-la do seu passado, pelo menos enquanto universo castrador da sua vivência.
Para além da adaptação de um autor consagrado, o grupo Cena Palco trabalhou através da adaptação do processo de construção de um espectáculo a partir da técnica de Sanford Meisner, que centra toda a sua preocupação pelo alcance da verdade em circunstâncias imaginárias na relação entre os actores e na forma como reagem um ao outro, não devendo estes agir, mas reagir, nem pensar, mas sentir.
Este é um espaço de experimentação e o valor deste projecto, além do texto de John Patrick Shanley, é essa ideia de espaço para novos criadores, como Maria Camões. Em termos de trabalho de actor, tanto Gonçalo Ruivo, como Carla Mendes têm momentos de grande intensidade durante o espectáculo, mas por vezes sente-se a perda do foco, como se aquela realidade, durante alguns segundos ou minutos, deixasse de ser a deles. A saída das personagens, do corpo, mais do que do palco, transmite-nos uma ideia de reduzida fluidez dos processos e dos caminhos que fazem durante todo o espectáculo, com regressos e saídas bruscas. A intensidade está ali, porque o texto permite essa consciência. Acima de tudo, um projecto que nos permitiu questionar os nossos fantasmas, as nossas inseguranças, a capacidade de resolver.




ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (13.02.2009)

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