Norberto Lobo e Lula Pena
O primeiro concerto juntos
Imaginem dois dos melhores músicos portugueses. Esta coisa de dizer os melhores tem sempre um risco associado, mas Norberto Lobo é mesmo um dos melhores guitarristas contemporâneos e a voz de Lula Pena é inabalável. Imaginem agora os dois juntos num só palco. Acontecerá. Dia 24 de Janeiro, na Galeria Zé dos Bois, às 23h. Imperdível para quem procura intensidade.
A ideia de juntar estes dois músicos para fazerem música um com o outro surgiu de Nelson Gomes e Pedro Gomes, da Filho Único. Pela simetria no que fazem, porque há algo que os aproxima, talvez o processo, ou a maneira de fazer as coisas. Na altura, o concerto acabou por não acontecer. Pena ou não, assim tem uma beleza diferente, porque é fruto do acaso.
Lula Pena viu o Norberto no Festival BOM, no Barreiro. Depois trocaram. Ele foi para os bastidores, ela para a frente do palco. Quando ela terminou o seu concerto, acabaram por tocar uma música, juntos, de improviso. Nessa actuação a empatia foi notável, não é das duplas mais improváveis, nem das mais prováveis, mas acabou por fazer sentido, ali. O melhor foi que quem viu gostou e entre o público estava Sérgio Hydalgo, da ZdB que acabou por lhes propor um concerto juntos, para poderem explorar este processo de tocar no mesmo palco, dar continuidade à experiência.
Dois músicos que trabalham habitualmente sozinhos. Lula Pena expressa-se muito através do seu corpo, com uma voz que funciona como instrumento e que explora como um rio, como terra, como céu. A sua voz apela a todos os sentidos, canta as memórias mais antigas e as suas raízes, com uma pronúncia que nos faz questionar a sua origem. Um dia brasileira, outro árabe, outro africana. Funde musicalmente linhas comuns e distintas.
“Phados”, o seu primeiro e único disco, continua a ecoar em palco e a ser fonte de outras explorações. Ela canta a fatalidade. Conceptualmente mexe na raiz do fado de Amália, na música de Caetano e Chico Buarque, e na morna de Cesária Évora. Brinca e trabalha com os sons, com aquilo que consegue fazer com a sua voz, com a sua respiração, com o seu corpo enquanto jarro de água que vai deixando cair uma voz/água límpida e fresca, quente e cheia de aparas de lápis coloridos, que misturados resultam em músicas de uma unicidade extrema. Lula Pena é como o universo que junta todas as músicas, como “terra mãe”. Intensa.
Norberto Lobo é uma guitarra acústica. De tenra idade e citadino fez um disco de uma qualidade inegável e que nos faz viajar de bicicleta pelo seu universo de acordes perfeitos. “Mudar de Bina” tem uma duração de mais ou menos 30 minutos, um pouco mais, e reúne em si dez canções, sempre instrumentais, de uma maturidade rara. Ele compõe com a presença do background de Carlos Paredes, dedica-lhe o disco aliás, mas também evoca melodias da música popular brasileira. De incrível dedilhado, que recorda os ensinamentos de John Fahey e a escola de Takoma tem uma carreira curta, mas nem por isso pouco importante. Já partilhou palcos com incontornáveis músicos contemporâneos como Devendra Banhart, Larkin Grimm e Lhasa. Norberto Lobo muda-nos a vida. Intenso.
Os dois músicos aceitaram em boa parte o desafio da ZdB por causa de uma simples canção, que funcionou de improviso e que permitiu que ambos acreditassem neste projecto. Os dois abrem novos horizontes.
O concerto espera-se com inéditos e surpresas, com poucas músicas conhecidas dos seus projectos individuais, mas a “La Isla Bonita” de Madonna será alvo de uma versão. Os dois à viola, com base no improviso, terão apenas um esboço do alinhamento, mas deixarão as coisas correr. Existirão canções inéditas e recentes, cantadas em línguas diferentes, com letras da sua autoria e de outros O que ambos garantem é que vai ser um concerto assente no improviso. É suposto que essa fragilidade passe, transpareça para o público.
Eles admiram-se, o futuro é incerto; ambos acreditam que os caminhos se continuarão a cruzar. É verdade que preparam a edição de discos individuais e têm outros projectos planeados, mas no entretanto vão viajando pelos lugares comuns, passear juntos. Depois de um fortuito encontro no Barreiro, encontram-se em Lisboa para um concerto em conjunto. Estabelecem relações emocionais e conceptuais musicalmente. O momento vai ser o momento do concerto. Só pode ser assim.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (23.01.2009)
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