Esferas individuais impenetráveis
Imaginámos dois dos melhores músicos portugueses em palco, uma guitarra e uma voz inabaláveis. O convite da ZdB estava feito, Lula Pena e Norberto Lobo juntos, num só palco. O concerto foi no passado sábado, um pouco depois das 23h, e o resultado não foi o esperado, pelo menos para o público. Foram momentos de falta de comunicação espelhados nos sons que se perdiam entre um lado e o outro do palco, apesar da proximidade física, própria de um espaço pequeno como a Galeria Zé dos Bois.
Esperava-se intensidade. As expectativas valem o que valem, há que saber geri-las, mas a verdade é que a julgar pelo momento de que se falava do Festival BOM, de empatia e simetrias, de improviso, a expectativa era de comunicação entre os dois. Mesmo que uma dupla improvável, faria sentido dar continuidade à experiência. Assim se ouviu e se leu por aí.
O concerto começou com muitos problemas técnicos, numa sala cheia, onde as pessoas esperavam de certeza um começo melhor. As questões pairavam no ar: ter-se-ia feito um sound-check antes do concerto? Alguém vai fazer alguma coisa ou vamos continuar a ouvir estes zumbidos insuportáveis?
Lula e Norberto continuavam a tocar. O problema era com a ligação à guitarra de Lula Pena, mas mesmo vendo espelhado no seu rosto o incómodo da situação, continuou a tentar sobrepor a sua voz ao problema técnico. Passado algumas músicas e já com o desespero a sentir-se na plateia, o técnico de som decide trocar o cabo.
Mais tarde, o amplificador de Norberto Lobo também tem os seus problemas, mas ele é mais perspicaz. Assume essa falha técnica e passa rapidamente para a guitarra acústica, alterando um pouco a forma como iria tocar aquela canção. Este episódio poderia não ser contado, mas a verdade é que serve para explicar a atitude dos dois músicos em palco, tão distinta e, talvez por isso, tão pouco empática. Lula Pena apresentou as suas canções, no seu tom, num universo fechado, em que, apesar da qualidade do seu trabalho, se sentia que não havia respiração ou espaço para deixar Norberto partilhar as mesmas canções.
Por sua vez, Norberto apresentou-se com menos força, talvez por não ter espaço para isso, mas com uma dificuldade enorme (apesar da vontade) em entrar naquele universo que não era o seu. Apesar disso, a perspicácia, a vontade e a luta contra o individualismo foram notáveis no músico, durante todo o concerto.
É verdade que os dois músicos trabalham habitualmente sozinhos. A voz de Lula Pena é exploratória, mas muito centrada em si, fechada, sem dar espaço a quem a acompanha. Norberto Lobo é uma guitarra acústica. Neste concerto também muito uma guitarra eléctrica. Apesar da sua qualidade inegável enquanto músico e artista, a sua força neste concerto parecia ter sido apagada. O dedilhado não foi aproveitado e a experimentação não parece mesmo ser o seu universo. A intensidade desvaneceu-se ali, em palco, lado a lado com Lula Pena. Ela estava num altar e Norberto não conseguia entrar, não por incapacidade artística ou por não estar à altura, mas porque a quebra de comunicação entre os dois era irremediável.
De notar que, apesar de globalmente ter sido um concerto com pouco sentido, a verdade é que houve momentos de beleza musical, mas que tinham sido igualmente bonitos no bar Maria Caxuxa, em 2008, quando Lula Pena apresentou maior parte destas canções a solo. Nos espaços em que Norberto se soltou, deu ares da sua graça e lembrou-nos da sua capacidade de nos fazer viajar nas notas da sua guitarra.
A admiração que nutrem um pelo outro também tem alguma mística e por isso o concerto deverá ter sido um bom momento para ambos. A desolação foi o não funcionar. Esperavam-se inéditos e surpresas como tinham apregoado, mas para quem viu o concerto de Lula Pena no Maria Caxuxa, foi uma repetição, mas de menos qualidade e intensidade da parte da cantora e acompanhada por um músico que merecia ter tido outro destaque. “La Isla Bonita” também ficou pelo caminho. Diziam que seria de improviso, sem grande alinhamento, a deixar as coisas correr. Não foi assim, o alinhamento estava lá e as coisas não fluíram. A fragilidade passou para o público, mas não como se esperava. Este não foi um concerto de Lula Pena e Norberto Lobo, foi um concerto de Lula Pena, com toques de Norberto Lobo, duas esferas que acabaram por não se tocar, nem nos tocar a nós. Resta-nos a consolação de que ambos continuarão a fazer um bom trabalho sozinhos e a tocar-nos dessa forma.
ANA MARIA DUARTE
Artigo publicado no Jornal Semanário (30.01.2009)
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