Melhores espectáculos de dança de 2008
1. “Cafe Müller” de Pina Bausch
2. “Glow” de Chunky Move (Fundação Calouste Gulbenkian)
3. “Beautiful Me” de Gregory Maqoma (Culturgest)
4. “Come together” de Rui Horta (Teatro Camões)
5. “Tempo76” de Mathilde Mannier (Culturgest)
A história de “Cafe Müller” é a história de uma excepção: 40 minutos de duração e seis intérpretes, entre os quais a própria
Levada pelo som dilacerante da música de Purcell, Malou Airaudodança movimentos entrecortados, e as mesmas sequências são retomadas pela coreógrafa, que faz o papel de duplo, mas com um tempo sempre desfasado circula às cegas na selva de mesinhas e de cadeiras, que vão sendo retiradas por Borzik, assim traçando o seu percurso.
Cafe Müller é uma lamentação de amor, uma metáfora doce e inquieta sobre a impossibilidade de um contacto profundo. Impressiona pela sua pureza e violência. Uma obra sobre a mortalidade do amor.
“Glow”, um corpo de luz em palco. 30 minutos de intimidade intensa juntando dança e tecnologia. O espectáculo veio ao Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, pela mão da companhia australiana Chunky Move, fundada em 1995 por Gideon Obawzanek, ex-bailarino da Sidney Dance Company, que assinou esta coreografia criada em 2006.
O espectáculo ficou certamente na memória de quem o viu. Uma dança energética, ao longo da qual a própria intérprete é que constrói a música e a iluminação. As sombras levantam a bailarina do chão, a bailarina eleva as sombras, tudo num jogo de luz, de imagens de angústia, de excitação, de empatia. Uma experiência intimista, com detalhe.
“Beautiful Me”, com coreografia e interpretação de Gregory Maqoma, é um solo que leva três coreógrafos em si mesmo. O coreógrafo sul-africano desafia a noção de dança, na procura de uma definição ou redefinição da sua própria linguagem coreográfica. Maqoma subiu ao palco para dançar sozinho, mas levou três coreógrafos em si mesmo, reflectindo o seu trabalho e as suas linguagens. Akram Khan, Faustin Linyekula e Vincent Mantsoe foram os mestres que escolheu para o inspirar. Maqoma absorveu as suas ideias, juntou o seu brilho e humor e dá-lhes voz, no sentido corporal do termo.
"Come together" marcou a estreia do coreógrafo Rui Horta na criação para o elenco da Companhia Nacional de Bailado. Aqui, Rui Horta trabalhou uma das suas temáticas mais marcantes - a posição do indivíduo na sociedade e aquilo que representa. Rui Horta saiu da sua cápsula e explora este universo fora da sua escala mais pessoal. Além dos bailarinos usou outros elementos em palco: o vídeo e a música.
“Tempo 76”, o espectáculo de Mathilde Monnier, desenvolve-se em torno da pesquisa em torno do uníssono e que faz reflectir o universo da dança contemporânea. Inovação em palco através de um corte com os tabus e da contradição intencional que nos faz reflectir. “Tempo 76”, cujo título se refere às 76 pulsações por minuto, explora as possibilidades da mesma organização de movimentos em corpos diferentes.
Nove bailarinos em cena rompem com os padrões dos mecanismos rítmicos através de uma releitura dos padrões sincrónicos e dos gestos repetitivos do quotidiano.
Melhores concertos de 2008
1. Nneka (Lux)
2. Thievery Corporation (Coliseu de Lisboa)
3. Kings of Convenience (Cidadela de Cascais)
4. Cat Power (Coliseu de Lisboa)
5. Omara Portuondo (Aula Magna)
Nneka é um animal de palco. Tem atitude. Veio da Nigéria, passando pela Alemanha e aterrou no Porto. A invicta foi convencida na noite anterior ao Lux. O piso inferior da discoteca estava a rebentar pelas costuras mesmo antes do concerto começar. Ao som dos ritmos reggae, hip-hop e soul, a artista revelou-se uma mulher, com cara de miúda, cheia de atitude e feeling na voz. «No Longer at Ease» era o mote. De punho erguido, foi usando os interlúdios para os seus manifestos políticos. Apesar de muitos não estarem claramente com vontade de os ouvir e estarem apenas lá para a festa, essa é a essência de Nneka e sem ela seria tudo menos intenso. É por essa vontade de se manifestar, de protestar contra as petrolíferas e de sentir tão penosamente a fome em África, que Nneka se torna tão genuína.
Com ritmo na cintura e de olhos fechados, ergue os seus pensamentos e canta com alma. Na sala estremeceu-se e transpirou-se dança em versão rendida. Eu rendi-me à sua atitude de manifestação de quem balança num mix urbano-africano. A sua entrega tão imensa num corpo tão pequeno mostra-a enquanto animal de palco.
Os Thievery Corporation aqueceram a noite de 19 de Outubro deste ano. A festa fez-se de sorriso nos lábios e muita dança nas ancas. O calor que se fazia sentir no Coliseu misturou-se com o espírito de intervenção de “Revolution Solution” e "El Pueblo Unido", apresentado já quase no final do espectáculo. Já no encore, depois de duas horas e muito de concerto, tocaram "The Richest Man in Babylon", mas as almas estavam sedentas de mais e os corpos queriam dançar até ao fim da noite. A banda regressou para um segundo encore. As luzes do tecto acenderam, mas eles voltaram para mais um tema não programado, apresentado pela cantora brasileira, que veio “substituir” Seu Jorge em alguns temas. “Sol Tapado” foi a canção escolhida para o fim de um concerto suculento. Extasiante, essa noite de domingo, em que quando saímos ainda se sentia o calor.
Poderia ser a mesma coisa ouvir os Kings of Convenience ao vivo ou em disco, mas não é. O duo norueguês é de uma qualidade excessiva em estúdio, e em palco assume-se como algo inédito. O primeiro imprevisto aconteceu e foi a origem de uma noite com muito e bom humor. A demora em chegar o capo para a guitarra lançou Oye para uma performance além da música.
Mais tarde outra surpresa, além das canções novas que foram mostrando. Passaram a quatro instrumentos de cordas, com a junção do contrabaixo e do violino, e o piano passou a ser regra. “Stay Out of Trouble” deu início ao primeiro show improvisado de “mouth trumpet” de Erlend Oye. Parecia ele que já estava a desejar que pudesse não tocar guitarra durante esse concerto. E isso acabou por acontecer. A guitarra estragou-se. Não havia outra e deu-se nova mudança no alinhamento. O “trompete” foi ganhando espaço no improviso.
Quando chegaram ao espaço deles para tocar, a ansiedade já era grande. Finalmente subiu ao palco a banda Dirty Delta Blues Band, que começou mesmo sem Chan Marshall. Tomaram os seus lugares e tocaram na penumbra, até à chegada da mulher que todos queriam ver. Quando se começou a ouvir a sua voz, mesmo sem a ver, quase que se ouviu o suspiro de alívio generalizado a ecoar pela sala. A espera já ia longa, mas rapidamente ela começou o espectáculo, dançando e deslizando sobre os seus sapatos brancos, de sapateado. A primeira fase do concerto passou-a Cat Power nessa estranha e sensual dança, na boca de cena, pescando corações, numa postura que escondia sorrisos entre as canções. Da espécie de desaquação ao palco, daquela que também não consegue viver sem eles, nasce um charme incrível que conquista muitos dos amantes de Chan Marshall. O concerto foi crescendo, terminando num agradecimento louvável.
Omara Portuondo esteve em Lisboa para um concerto inesquecível. Há quem fale de falhas técnicas e de que a voz dela já não é o que era. A verdade é que a diva cubana de 78 anos tem uma presença invejável e ritmo na alma. Entrou em palco a dançar, com uma fita e flor no cabelo, com um vestido leve, de cor clara.
Portuondo canta de uma forma que por vezes chega a ser teatral, de tão expressiva, representando as histórias e os sentimentos que vai recordando através das letras das suas canções.
Bendita Omara. Que inquietude. Até o segurança da Aula Magna dançava, meio direito, mas era inevitável reparar no sorriso de quem estava a viver aquele momento de luxo. A embaixadora de Cuba não veio para uma despedida. De passos incertos e voz intensa e emotiva, Omara promete continuar a cantar. E nós agradecemos.
Melhores espectáculos de teatro de 2008
1. “Vita Mia”, de Emma Dante (Centro Cultural de Belém)
2. “Curtas”, Primeiros Sintomas (Espaço Ginjal)
3. “As Criadas”, de João Garcia Miguel (Centro Cultural de Belém)
4. “Mona Lisa Show”, de Pedro Gil (Centro Cultural de Belém)
5. “Kamp”, de Hotel Modern (Centro Cultural de Belém)
“Vita Mia” foi apresentado no ciclo dedicado ao trabalho de Emma Dante, que apresentava três perspectivas diferentes sobre o tema da família, oferecendo-nos simultaneamente, reflexos da cultura siciliana e da sua imagem de família.
O público entra e encontra um quarto vazio, apenas com uma cama ao centro. O quarto não é confortável, tem um ambiente denso. Um buraco negro, um salto para o vazio. A mãe olha para os seus três filhos com doçura e tristeza, passa-lhes o ensinamento de que a vida é efémera e por isso tão preciosa. A vida é uma corrida à volta desta cama: será um refúgio, um espaço de tranquilidade e repouso, um início ou um fim em si mesmo? Este quarto e esta cama transbordam tristeza e loucura. Este espectáculo é uma vigília fúnebre, é nada mais nada menos que uma tentativa de adiar esta dança que antecede a morte, que transborda de loucura. Um olhar sobre a história através dos olhos da personagem.
“Curtas” é uma mostra teatral de peças de curta duração. Produzida pela “Primeiros Sintomas” junta um conjunto de autores, actores e encenadores que mostram o seu trabalho durante uma peça com alguns minutos. No Espaço Ginjal, foi um dos espectáculos mais interessantes deste ano, pela sua capacidade de mudança, de integração do espaço e das pessoas, pela fluidez do discurso artístico conseguido numa peça tão fragmentada como esta, que no fundo são várias peças. O todo além das partes.
A peça “As Criadas” trouxe uma nova abordagem ao texto de Jean Genet, que no final da primeira metade do século XX causou tanta polémica pela sua forte crítica à hierarquia das classes sociais e às relações de escravatura. João Garcia Miguel misturou o teatro com o audiovisual, num palco repleto de boas soluções de encenação e de cenografia.
O espaço cénico transmite, nesta encenação, o sufoco do próprio texto. A encenação de Garcia Miguel cria uma espécie de nova linguagem teatral, através da repetição, presente não só no discurso (por exemplo, os actores repetem várias frases que são ditas nas três línguas), mas presente na música que vai surgindo em diferentes versões, na movimentação do cenário e por vezes no vídeo.
“Kamp” significa barbárie. Kamp trata de um dos campos de concentração mais bárbaros da história: Auschwitz. Reconstrução de uma realidade histórica. Esse é o objectivo que Hotel Modern tenta atingir em “Kamp”.
Este espectáculo é mais do que teatro, é uma mistura forte de animação, teatro e até cinema. “Kamp” mostra a tragédia, a dor, o pânico. É algo que nos sufoca, que nos faz revolver o estômago e as entranhas, tal como a própria história. Talvez por o sabermos tão perto da realidade. É tão real, as imagens doem e têm um silêncio sufocante.
Eles falam de si próprios, abrem-se ao público como se fosse um reality show. Como se de uma montra se tratasse. No fundo falam de nós ou de pessoas que conhecemos, em diálogos cruzados, que por vezes se tocam, dando respostas uns aos outros, criando dúvidas. Diálogos murmurados que nem sempre estão em foco. A certa altura estão todos a falar ao mesmo tempo. “Mona Lisa Show” é assim.
Tudo acontece entre a passadeira, os projectores e as personagens. Em termos temáticos não nos traz nada de novo, mas dá-nos flashes, fragmentos que podem fazer a diferença. Clichés e frases que toda a gente já disse ou já ouviu: “Quero acabar contigo. Não é sobre ti, sou eu. Preciso de espaço. A comida é quase tão boa como a da mamã. Não desistas de mim.” É de um naturalismo pop soberbo.
Ana Maria Duarte
Artigo publicado em Jornal Semanário (31.12.2008)
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