quarta-feira, 27 de agosto de 2008

35 anos depois - "Berlin"


Lou Reed em noite merecida

À espera do foco desde 1973

Lou Reed tocou no Campo Pequeno, na mesma noite que Leonard Cohen. A escolha foi difícil, mas não me arrependo. Tinha de ir ver Lou Reed porque mais tarde vou ver Leonard Cohen e porque “Berlin” já tinha sido mal amado tanto tempo que merecia o olhar intenso sobre ele, apresentado de uma ponta à outra. Muitos preferiram Leonard Cohen, para um concerto de qualidade inquestionável, mas a intensidade de “Berlin” foi merecida e bem recebida. Esperemos que não nos voltem a fazer uma destas e que não haja escolhas difíceis, concertos bons sim, mas em noites diferentes. 

A noite foi a de 19 de Julho. Lou Reed subia ao palco do Campo Pequeno para trazer “Berlin”, obra-prima maldita de há trinta e tal anos atrás. Tendo sido renegada nessa altura, hoje é considerada essencial na carreira do músico. Este disco nunca foi fácil para Lou Reed. Agora apareceu meio megalómano, bem acompanhado e envolvido por uma mística que lhe é tão característica. Em palco, 12 crianças num coro de uma qualidade sublime, uma orquestra e uma banda fantástica. Ao todo eram 27 em palco, contando com o próprio Lou Reed. Soberbo, uma das figuras mais fulcrais na história do rock, foi apresentando um espectáculo pensado e, por isso, de extrema harmonia.

“Berlin” é um disco intenso, relato de uma paixão cheia de conflitos. A transformação do disco mal-amado para o palco sempre foi um desejo do músico. Em 2007, Lou Reed tirou as canções do armário e encenou-as em Nova Iorque. Na altura, Julian Schnabel registou a aventura em filme. As opiniões foram tão positivas, que o que poderia ter sido coisa de poucas noites para apenas recordar depois em imagem registada, acabou por gerar uma digressão. Assim, 35 anos depois da edição do disco, aí estava ele em palco, e esta foi a 43ª interpretação na íntegra daquele álbum tão depressivo. Denso, foi apresentado do princípio ao fim, com ainda algumas surpresas como “Satellite of Love”, “Rock and Roll” e “Power of Love”. Aqui Lou Reed mostrou-se mais solto.

Conduzido musicalmente por Bob Ezrin, produtor do próprio álbum, o espectáculo foi avançando com momentos de beleza indescritível, com grandeza ainda maior conseguida pelo acompanhamento do New London’s Children Choir e da London Metropolitan Orchestra.

As projecções em palco foram um trunfo e envolveram todo o espectáculo épico. A banda de suporte acrescentou presença e energia àquilo que Lou Reed tem de melhor: a sua voz. Momentos ligeiros só mesmo quando Lou Redd cantou os parabéns ao violoncelista da London Metropolitan Orchestra, depois de agradecer a todos os presentes. Homem de poucas palavras, transmite muito através da sua figura e da sua música. Nem precisa de falar, a música fala mais alto. Voltou a provar que é um verdadeiro ícone do rock. Foi figura central de uma época fulgurante da cultura pop, que teve em Andy Warhol como mentor ideológico. Sentir, agora, que tudo isto ainda faz sentido é no mínimo reconfortante. A casa meio vazia, dada a concorrência, estava cheia de fiéis. Mesmo não esgotando a lotação, a quase ópera-rock sobre a face mais sombria da vida de um casal jovem cheio de dependências e sofrimento mereceu o desafio. A imagem de Lou Reed num palco cheio de biombos pintados e a visão da sua personalidade intensa vão ficar. Sem palavras a interromper o desfilar das canções (que durou mais de uma hora), “Berlin” ouviu-se em Lisboa. Tendo em conta o álbum pouco acessível, gerou um concerto participado. Pena a presença das palmas fora de compasso a que grande parte do público português adere, nem se sabe bem porquê, e os gritos desmedidos das pessoas que bebem demais ou têm maneiras muito peculiares de demonstrar o fanatismo. Abstraindo-nos destes pormenores menos felizes, conseguimos assistir à implosão e à explosão em palco de um dos álbuns mais intensamente tristes e bonitos da história do rock. A escolha está feita e merecida.

Artigo publicado no Jornal Semanário - Julho 2008

Fotografia de Raquel Albino

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