segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Kamp: as memórias revoltas


Hotel Modern no CCB
Uma realidade reconstruída

Espectáculo: Kamp; que significa barbárie. Kamp trata de um dos campos de concentração mais bárbaros da história: Auschwitz. Companhia: Hotel Modern. Enquadramento: Festival FIMFA Lx8. Datas: 16, 17 e 18 de Maio. Horas: 21h nos dois primeiros; 18h no último. Local: CCB – Pequeno Auditório. Preços: 10 a 12 e meio. Euros. A história: essa é mais complexa. É história mais que estória, que passo a contar.

Reconstrução de uma realidade histórica. Esse é o objectivo que Hotel Modern tenta atingir em “Kamp”. Quem conseguiu esquecer o que aconteceu em Auschwitz? E quem consegue aceitar? Sessenta anos depois da evacuação Auschwitz tornou-se um ícone negro da era moderna, uma catástrofe inexplicável, quase uma lenda. O que lá ocorreu é difícil de conceber, por vezes até para os que viveram essa experiência. Esta é mais uma história do que uma estória, pela sua vertente de reconstrução de uma realidade, de algo que aconteceu e que ninguém consegue esquecer. Hoje, enquanto as últimas testemunhas vão desaparecendo, os actores pensaram que seria o momento de tomar a seu cargo as suas memórias.
Um modelo em grande escala de Auschwitz preenche o palco. Blocos apinhados, uma estação de caminho-de-ferro, um portão onde se lê "O Trabalho Liberta". Hotel Modern tenta imaginar o inimaginável: o maior extermínio em massa da história, cometido numa cidade construída para esse fim.
O protótipo do campo é trazido à vida no palco: milhares de marionetas de três polegadas, feitas à mão, representam os prisioneiros e os seus executores. Os actores movem-se pelo cenário como gigantescos repórteres de guerra, filmando os terríficos acontecimentos com câmaras em miniatura; o público torna-se testemunha.
Este espectáculo é mais do que teatro, é uma mistura forte de animação, teatro e até cinema. Talvez este resultado tenha sido conseguido pelas suas origens. O grupo teatral Hotel Modern, criado em 1996 e estabelecido em Roterdão, é constituído pelas actrizes/realizadoras
Pauline Kalker e Arlène Hoornweg e pelo artista plástico Herman Helle. É em Roterdão que iniciam as primeiras actividades artísticas. Cada um deles aí reforçando a sua própria rede de artistas, de músicos e de companhias teatrais. O início em Roterdão, no âmbito do grupo teatral Hotel Modern, teve lugar no atelier dramático De Lantaren/Venster e no Productiehuis do Teatro Municipal de Roterdão. Actualmente, Hotel Modern dispõe de um atelier no complexo artístico Kunst & Complex.
«Hotel Modern realiza um teatro evocativo que agrada a um público de todas as idades. As suas representações misturam, em partes iguais, artes plásticas, “teatro-objecto”, teatro tradicional, música e cinema. A utilização de maquetas de cartão, utensílios diversos e brinquedos, entre outros, é-lhes característico. É assim que, numa cidade construída com caixas de embalagem de frigoríficos, um pão branco transforma-se num autocarro, camarões deslocam-se em motorizadas, ramos de salsa formam uma floresta de tamanho natural, e o rei Lear vagueia pelas estevas que não são senão uma pele de carneiro... Estas maquetas permitem aos realizadores de Hotel Modern fazer um “filme de animação em directo”.» - explica Leidsch Dagblad.
“Kamp” mostra a tragédia, a dor, o pânico. É algo que nos sufoca, que nos faz revolver o estômago e as entranhas, tal como a própria história. Talvez por o sabermos tão perto da realidade. É tão real, as imagens doem e têm um silêncio sufocante. “Uma maqueta enorme cobre o chão de um estúdio etéreo. Filas de blocos, peças calcinadas, uma estação de caminho-de-ferro cheia de vagões-brinquedo. É o silêncio. Uma mulher está sentada a um canto, numa pequena mesa, consertando as cabeças de um batalhão inteiro de bonecos de ferro. As cabeças minúsculas têm, cada uma, a sua expressão própria, são feitas de barro.” São centenas de marionetas gaseadas e mortas, cadáveres de marionetas.
Com efeito, é sobre o palco, debaixo dos olhos dos espectadores, que são construídos os exteriores em miniatura e em seguida são projectados num grande ecrã. O resultado é surpreendente e acima de tudo torna as imagens mais reais.
Não deixará ninguém indiferente esta loucura de criar Auschwitz em miniatura, a dor que ainda se sente. Kalker tinha uma razão particular para querer representar a Segunda Guerra Mundial. O avô morreu em Auschwitz. As lembranças dolorosas do pai foram abordadas no espectáculo anterior, de 2004, “De man met vijf vingers” (“O homem com cinco dedos”). Agora regressa, para ir mais fundo, para agitar ainda mais, para não deixar esquecer as suas memórias, para de alguma forma gritar a sua dor e perplexidade.


Artigo publicado no Jornal Semanário - Maio 2008

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