quarta-feira, 27 de agosto de 2008

"Aquele querido mês de Agosto", de Miguel Gomes

"Meu querido mês de Agosto, por ti, passo o ano inteiro a sonhar…"

Se ainda não foram ver “Aquele querido mês de Agosto”, vão, mas preparem-se para sair da sala a achar que a música cantada pelo Dino Meira afinal faz sentido; para sair com vontade de ir passar uns dias numa daquelas aldeias, como Coja, e ver o Paulo a saltar da ponte romana. Miguel Gomes, realizador do filme, consegue-o com uma mistura de ficção e documentário.

“Aquele Querido mês de Agosto” passa-se no coração do Portugal profundo, na serra. Foi o único filme português presente, este ano, em Cannes, tendo sido incluído na Quinzena dos Realizadores. O filme nasceu em 2004: Miguel Gomes estava de férias no concelho de Arganil, onde tem casa de família, e encontrou, no concerto de um grupo de baile, o tema para a sua segunda longa-metragem. Ouvi-o recentemente, em entrevista, a contar: “O guitarrista estava armado em parvo e resolveu enfiar um capacete de mota na cabeça; a vocalista estava com um ar muito chateado. Imaginei que eram namorados e que estavam zangados”. Foi assim que começou o argumento.

Ainda bem que temos esta explicação, porque o facto de, de vez em quando, um personagem (ora o Hélder, ora o médico que aparece num momento de crise) enfiarem um capacete na cabeça, não tinha, para o mero espectador, uma razão explícita. Talvez a paranóia das motas, também essa representada na concentração motard em Góis, onde vemos cenas de miúdos a participarem numa espécie de festa da espuma, mas agora já sabemos que aquele capacete, naquele momento, simboliza toda a origem do argumento. Para quem continuar sem saber, está garantido um momento de riso, tendo em conta o efeito inesperado que tem nas cenas.

O filme divide-se em duas partes, a primeira documental, a segunda de ficção. Tendo tido origem na adaptação a um menor orçamento, esta solução encontrada em forma de divisão, oferece-nos uma das coisas que o filme tem de brilhante: a passagem de elementos da primeira para a segunda parte e vice-versa. A grande mais valia deste filme é de facto misturar documentário e ficção. As personagens são, por vezes, as da aldeia, outras, as da equipa de rodagem. Todos participam. O cenário é o das festas, aquelas tradicionais, que metem procissões, milagres e tudo a que têm direito. O universo conceptual é o dos emigrantes, que voltam a Portugal nas férias de Verão, e os heróis da aldeia. O Paulo que salta da ponte romana, por exemplo. O filme dotou-se de um elenco de gente da terra, o que dá uma proporção de realidade mais forte, e mesmo quando o “acting” não é o melhor, a mim faz-me rir, faz-me ter uma espécie de carinho por aqueles personagens/pessoas. As gentes da terra, aquelas que lá estão desde sempre, contam as suas histórias de amor, entre cenários sociais repletos de machismo e de preconceito, mas que existem. É a naturalidade das cenas.

A história, que conta a paixão de Hélder e Tânia, os primos que se apaixonam no Verão, naquele querido mês de Agosto, é simples e própria desses lugares tão longe da urbe onde os beijos começam depois de canções com as quais as pessoas rodopiam nos bailaricos. E ao fundo, ou no palco principal, dependendo das cenas, está aquela música: ligeira, popular. Não é “pimba”, porque, na envolvência da história, passa a fazer sentido.

Apesar das t-shirts dos AC/DC no corpo de uma ou outra personagem, aquela aldeia na Beira Interior ainda é muito ingénua, não globalizada e indiferente ao que se passa nas cidades, ou quase. Pelo menos durante aquele mês as suas necessidades são bastante diferentes das dos citadinos. Eles querem festa, música romântica, convívio, as miúdas querem conhecer os emigrantes que vêm em Agosto e apaixonam-se pelos primos que vêm das cidades. Afinal os opostos atraem-se. E é nesta base que o filme cria, infelizmente, uma certa superioridade por parte do espectador, que se ri, transparecendo uma certa incredibilidade. Contudo, era inevitável, porque quem vê o filme na sua confortável cadeira de cinema, no meio urbano, sente diferenças perante aquelas pessoas, que estão lá, naquelas aldeias do Portugal profundo, que muitos de nós nunca viram, e vivem histórias que nós nunca imaginámos. As diferenças existem. As casas, as práticas, as crenças, os trabalhos, a ocupação dos tempos livres, a música, os hábitos, as pessoas. Há distância entre aqueles que observam esta história e aqueles que a vivem. Há distância, mas não há preconceito, pelo menos por parte de quem filma e de quem construiu o filme. Assim transparece. Rimo-nos das desgarradas que se cantam na festa do bacalhau, antiga festa dos colhões, e ficamos incomodados com as imagens de um javali morto, acabado de ser caçado e que se esvai em sangue. Mas é nesse cenário, umas vezes mostrado de forma idílica, outras de forma crua, que se passa a história de amor simples e ingénua de Tânia e Hélder. E Miguel Gomes tinha de o mostrar.

A segunda longa-metragem do realizador é daquelas cheias, onde não falta nada, porque nos dá o riso através das histórias que vão chegando pela boca das pessoas da aldeia; e nos dá a magia de uma história simples na visão de um citadino que consegue mostrar-nos esta realidade sem preconceitos.

Artigo publicado no Jornal Semanário - Agosto (ed. 26.08.2008)

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