segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O essencial de Raimund Hoghe


Dança Contemporânea em palco vazio
“Swan Lake – 4 acts” na Culturgest

Hoje e amanhã à noite o Grande Auditório da Culturgest recebe o espectáculo “Swan Lake – 4 acts” do coreógrafo Raimund Hoghe. Como há coisas que fazem parte da estética e do universo artístico dos criadores, o palco estará, como é habitual nos seus trabalhos, vazio. Incrivelmente vazio. O criador e três bailarinos que o acompanham estarão uns ao lado dos outros e a experiência do público será a da sensibilidade de gestos que ficam, mesmo quando tudo o resto é esquecido.

Hoghe e três bailarinos que dominam bem a técnica clássica colocam-se em palco, próximos uns dos outros e alguns gestos ancestrais do ballet afluem à superfície da sua pele. “O que fica quando tudo foi esquecido? Gestos de enorme delicadeza, lentos, simples, profundamente tocantes.”, apresenta-nos a programação da Culturgest. Coreógrafo e bailarino, performer e quase artista plástico, Raimund Hoghe parece conhecer tudo o que diz respeito ao palco como se fosse a sua alma. Daí também a importância do espaço vazio, parece que ao fazer esta peça o coreógrafo deu tudo, esvaziou de facto a sua alma, para apresentar e guardar apenas aquilo que é essencial. Raimund Hoghe afirma que “a sua inspiração para subir ao palco surgiu, sobretudo, das palavras de Pier Paolo Pasolini sobre lançar o corpo na luta. A realidade à sua volta, o tempo em que vive, as pessoas, as imagens, o poder e a beleza da música, além do confronto com o próprio corpo que, no seu caso, não corresponde aos ideais convencionais de beleza, são outras das fontes que o inspiram.”.
Hoghe foi jornalista e escritor em Wuppertal, tendo-se tornado, posteriormente, dramaturgo de Pina Bausch. Desde 1989 que cria as suas próprias peças, as quais têm sido apresentadas por toda a Europa, Japão e Austrália. Já recebeu vários prémios, incluindo o Prémio de Coreografia dos Produtores Alemães, em 2001 e o Prémio da Crítica Francesa, em 2006, com “Swan Lake, 4 acts”, na categoria de Melhor Espectáculo Estrangeiro.
Este espectáculo procura apresentar o essencial e por isso é apresentado num palco totalmente vazio, em que o que tem de ficar na memória e na visão de quem o assiste é realmente o gesto, e é por isso que esse gesto constrói o ritmo e pode tornar a experiência inesquecível.
O espectáculo foi descrito como uma sala nua e negra, vazia e pesada. Tendo em conta que este espectáculo “é” o “Lago dos Cisnes”, as primeiras questões são sempre: onde está o jardim, o castelo, a gesta, o aniversariante, o príncipe e todo aquele ambiente fadesco? Tchaikovsky poderia vir preencher o vazio desta sala, mas não. Tal vazio não é preenchido e quem está à espera de um espectáculo com a magia de Tchaikovsky e do “Lago dos Cisnes” desengane-se e prepare-se para uma experiência diferente. Aqui a magia é outra, é a de não fantasiar os olhos do espectador com purpurinas e vestes brilhantes do bailado do “Lago dos Cisnes”, mas antes apresentar a crueza dos movimentos. O público estranhará, certamente, e questionar-se-á sobre a mudança e sentirá inquietação. Raimund Hoghe sabe que a provocará e quer provocá-la. Faz parte do seu jogo enquanto coreógrafo. Este espectáculo é um ritual, um sonho que funde ser e parecer, ilusão e realidade. A música faz-nos balançar entre essa memória do “Lago dos Cisnes” e este novo espaço e coreografia. Faz-nos nunca nos entregarmos nem a um, nem a outro. É como se quando estivessemos a entregar-nos a este ritmo gestual, um som nos puxasse para a memória e quando vagueamos nessas memórias da fantasia, olhamos para o palco e o vazio traz-nos para esta estética.
Todos os bailarinos têm formação clássica, Ornella Ballestra, Nabil Yahia-Aissa e Lorenzo de Brabandere. As suas asas e os movimentos que as movem são ligeiros e suaves. Também quando parecem saltar, na verdade não o fazem e o nosso olhar quase que espera o fantástico salto clássico, que fica a pairar na nossa memória. Ornella Ballestra transmite uma beleza ondulante com as suas grinaldas presas aos braços, o argelino Nabil Yahia-Aissa Brynjar Bandlien e o performer Lorenzo de Brabandere têm movimentos muito orgânicos. Sobre um argumento tão conhecido, Hoghe impõe a sua marca e a sua estética que parece a alguns olhos enlouquecida pela urgência de amar. Este é o seu “Swan Lake” particular, com um contexto de alma urgente, de palco vazio e de movimentos suaves e orgânicos. Uma peça que balança entre o que esperamos e o que realmente nos apresenta. O virtuosismo e os cisnes a que nos habituaram nas encenações do grande clássico são esquecidos e a proposta é a de nos mostrar algo que é essencial, e que à partida, é invisível aos olhos.

Artigo publicado no Jornal Semanário - Fevereiro de 2008

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