segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Declaração de rendimentos: o corpo


“Repartição” em cena na Culturgest

“Repartição” é uma peça que joga com as palavras e com os actores. Repartição de uma personagem em várias vozes, repartição de finanças. Jogos e sonoridades aos quais Miguel Castro Caldas nos tem vindo a habituar com a sua escrita. A encenação é de Bruno Bravo, que, em conversa, nos falou do projecto. Com estreia agendada para 4 de Março, a peça estará na Culturgest até ao dia 8 do mesmo mês, integrada nos “Primeiros Sintomas”.

O espectáculo surge de uma ideia principal: a de criar uma personagem com várias vozes. “Repartição” quer passar uma ideia, pôr o público a reflectir não só sobre aquilo de que fala, das palavras que vão surgindo ao longo do texto, mas da construção dos personagens, da essência do teatro. Bruno Bravo explicou-nos a questão central do projecto: “O objectivo final é conseguir passar alguma coisa. A ideia central foi a de repartir uma personagem em várias vozes, fazer a repartição de um corpo. Ana é a personagem central que vai a uma repartição de finanças fantasma para declarar os rendimentos, que afinal se reduzem ao seu próprio corpo.”
Este espectáculo deverá ter a força habitual inerente aos textos de Miguel Castro Caldas, que são quase poéticos e que obrigam quem os encena a procurar a musicalidade e as sonoridades do mesmo. Bruno afirma: “O texto está na linha a que o Miguel nos tem habituado, faz-nos procurar o teatro e sua própria musicalidade. Aqui encontramos 8 actores que apresentam um monólogo. Estas personagens habitam na cabeça de Ana, mostrando um contexto de contradição.” Pode parecer estranho, mas não tem também cada um de nós várias personagens na cabeça, várias vozes que vamos assumindo num mesmo corpo, o nosso?
Este texto poderia ser um monólogo de uma só pessoa, mas a ideia é exactamente essa de mostrar a repartição em vários corpos. Aqui vários corpos representam uma só voz, enquanto em nós, um só corpo representa várias vozes. “Repartimos, e através do jogo de palavras o Miguel chegou à repartição de finanças fantasma, sobre a qual já tinha alguns textos escritos quando tinha pensado fazer uma ópera com actores. Como não o chegou a fazer, surgiu a ideia de pegar neles e transformá-los em material novo, ganhando este sentido da repartição da personagem."
Ao longo do texto surgem temas sociais e políticos como a proibição de fumar, dos seguros de saúde que não a seguram, da casa que temos para pagar ao banco, do endividamento, e obviamente das finanças, das declarações de arrependimento, mais do que de rendimentos, contudo a encenação não é feita numa perspectiva de crítica social, mas antes numa perspectiva de “fazer pensar sobre”. O espectáculo declara, mas não crítica no sentido de apontar o dedo. Bruno Bravo define-o “quase como um manifesto, o espectáculo tem algum teor político, de descontentamento.”. É mais importante passar uma mensagem que seja o início de um movimento de reflexão.
Ao olhar as fotografias de um dos ensaios do espectáculo questionei-me porque estariam vestidos com uma espécie de fatos cor de pele que os parecem deixar despidos. Ao falar com Bruno Bravo relacionei a imagem com esta ideia do actor não ter nada, de só ter o próprio corpo. Explorei um pouco essa imagem, trocando palavras com quem a pensou: “O estarem todos iguais em palco tende a mostrar uma unicidade física, mas com caras diferentes. Aí não procurámos a semelhança. Por outro lado queríamos dar a ideia de despojamento, já que Ana vai à repartição de finanças declarar o corpo, pois não tem mais nada a declarar. Queria trabalhar esta ideia de pele, de nudez de figurinos. Foi isto que me motivou. Aqui só há o corpo, não há nem figurino, nem cenário (só o próprio palco que acaba por ser cenário). Queria estabelecer um paralelo entre o não haver figurino e o não haver nada além do corpo do actor”.
O actor acaba por não ter nada a que se agarrar durante o espectáculo a não ser o seu próprio trabalho de actor, não há figurinos, nem cenário, nem música para o suportar. Apenas a música que é feita com as vozes, com as pausas das vozes. Uma única voz em oito diferentes vozes, que por vezes tomam um tom quase obsessivo, música sem instrumentos, a cru, sem exploração do estético pelo estético. O trabalho do corpo, da voz do actor no seu extremo. Sem mais nada, até porque “O essencial é invisível aos olhos.”

Artigo publicado no Jornal Semanário - Fevereiro 2008

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