segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Reflexos de um mesmo ventre

A bestialidade humana
Ciclo Emma Dante em Lisboa

O ciclo dedicado à encenadora italiana Emma Dante no CCB teve início ontem e termina a 9 de Março. Este ciclo é composto por três peças apresentadas pela primeira vez em Portugal. A encenadora tem tido um papel emergente no novo teatro europeu e o Semanário quis falar com ela sobre a sua vinda a Portugal e a importância do seu trabalho. Este convite do CCB contempla uma trilogia de espectáculos que tem como centro, mas não se esgota, na família, sendo os espectáculos apresentados: “Carnezzeria” (2002), “Vita Mia” (2004) e “Mishelle di Sant’Oliva” (2005).

Os três espectáculos surgem num sentido de complementaridade, já que são apresentadas três perspectivas diferentes sobre o tema da família, oferecendo-nos simultaneamente, reflexos da cultura siciliana e da sua imagem de família.
Esta cultura siciliana em muito se assemelha à portuguesa e, dada esta aproximação cultural e de sonoridades linguísticas, já que o dialecto siciliano tem algumas palavras muito próximas do português, apresenta-se uma óptima oportunidade de descoberta de um relacionamento cultural. A trilogia mostra bem o talento da encenadora e as palavras que partilhou conosco acabam por nos desvendar os seus objectivos e métodos de trabalho. O ciclo engloba encontros e laboratórios realizados pela companhia e dirigidos a actores portugueses e estudantes de teatro, críticos e investigadores, que servirão para gerar o confronto teórico e cultural.

Entrevista a Emma Dante

Ana Maria Duarte: Os três espectáculos têm como temática central a família. Explique-me um pouco do sentido da escolha destes três espectáculos e os objectivos deste trabalho
Emma Dante: Os espectáculos têm em comum o ventre que os gera: a família, que afinal é o lugar onde um indivíduo se forma, onde decide o seu futuro. É por isto que a família pode ser perigosa no futuro da vida de um ser humano, quando esconde um desejo ou alimenta uma relação de loucura. Muitas vezes pais e filhos, irmãos e irmãs, tios e primos, não se entendem, não se amam, mas continuam a escolher estar juntos. Contudo, aqui a família é só um ponto de partida, pois as temáticas de que falamos tornam-se universais. Interessa-nos explorar uma pequena comunidade, para compreender hábitos e costumes de um mundo mais vasto. É como se olhassemos através do buraco da fechadura e vissemos um jardim enorme. Eu vejo os pormenores, não tenho a visão do todo, mas sei que os pormenores que vejo fazem parte deste todo, por isso contemplo o jardim do meu pequeno ponto de vista.

AMD: Este ciclo é dedicado ao seu trabalho e une três espectáculos que são apresentados pela primeira vez em Portugal. Qual é a recepção que se espera do seu trabalho no nosso país?
ED: Espero que em Lisboa o público possa seguir e apreciar sobretudo o fruto de um percurso e não de um só espectáculo confeccionado individualmente. A oportunidade que nos deram foi a de receber o projecto de um grupo como o meu, que trabalha nestes moldes desde 1999 e que tem criado uma poética própria. Já estamos felizes pela oportunidade de mostrar o nosso trabalho.

AMD: Li, num texto de divulgação do ciclo, que os espectáculos mostram a cultura siciliana e que esta é parecida com a portuguesa. Quais são as principais características desta cultura e quais as proximidades que mostra?
ED: Quando há uns anos estivemos no Porto encontrámos muita alegria entre as pessoas e uma grande atenção e preocupação com a hospitalidade. Não conheço Lisboa, mas sinto que, na mesma linha, a alegria e a hospitalidade possam ser semelhantes com as de Palermo. Penso nos portugueses como gente do mar e por isso aberta e bastante solar. De resto, não sei se há defeitos em comum, mas nos meus espectáculos normalmente tenho um olhar crítico sobre a minha terra, com o objectivo de reflectir e de melhorar.
AMD: Os laboratórios e encontros realizados pela Companhia durante este ciclo, dirigidos aos profissionais do teatro, foram pensados tendo em vista eventuais colaborações. Que colaborações prevêm e a que níveis?
ED: Os laboratórios não têm nenhuma finalidade projectada, pelo menos por agora. O Giacomo Scalisi (Assessor Teatro CCB) quis justamente aproveitar a nossa passagem por Lisboa e programar estes encontros que têm por base a ideia de projectar e de confrontar. Parece-me importante promover o encontro entre mim, a nossa companhia e os estudantes portugueses.

AMD: A “Carnezzeria” fala de como entramos num mundo de monstros e bestas, e como esta nos leva a perder o sentido de humanismo, que acaba por ser substituído por uma bestialidade na qual as personagens vivem. O que procura transmitir com este espectáculo? Como podemos entrar neste mundo sem nos arriscarmos a tornar-nos um deles?
ED: Os actores trabalharam muito o seu instinto, procurando apagar o sentimento de vergonha próprio dos humanos e do qual os animais são privados. Acabamos por transformar o seu mundo de humanos num mundo de bestas sem moral.

AMD:
Fala da família de três pontos de vista diversos, pode antecipar-nos quais são?
ED: “Carnezzeria” é a história de três irmãos que partem de uma aldeia do interior siciliano numa viagem, com a irmã grávida de um dos três. Os irmãos abandonam-na no palco com flores e luzinhas de festa, fazendo-a acreditar que chegará um homem para se casar com ela. Ela de facto está vestida de noiva. Pouco a pouco vai descobrir, que desde há muitas gerações, na sua família, se pratica o incesto e que os seus irmão abusaram dela, de Nina, a meia tola.
“Vita Mia” é uma vígilia sem morto. Há uma cama vazia, no centro da cena. À sua volta estão a mãe e dois filhos. O terceiro filho anda de bicicleta. O público é convidado a sentar-se em semi-circulo envolvendo a cena. O espectáculo conta a impossibilidade da mãe em aceitar a morte prematura do filho que anda de bicicleta, que apesar de ter morrido num acidente ela continua a ver vivo. O público vê a história através dos olhos da mãe e no final ela veste-o de branco e entrega-o, deitando-o no leito da morte.
“Mishelle di Sant’Oliva” é a história de uma relação conflituosa entre pai e filho. O filho é homossexual e não é aceite pelo pai que há 10 anos não o olha na cara, virando-lhe sempre as costas. Todas as noites, Salvatore, o filho, veste-se de mulher e tomando como seu o nome da sua mãe – Mishelle – vai prostituir-se na praça de Sant’Oliva, o bairro das prostitutas transsexuais. A mãe de Salvatore foi-se embora, abandonando-os, e o pai ainda a espera, com muita saudade e veneração.

AMD: Como começou a escrever? É uma forma de se aproximar desta sociedade sobre a qual quis reflectir e manifestar-se? Quais são os sentimentos que a inspiram?
ED: Não gosto de romances, nem de histórias com finais felizes. Uso o teatro e a escrita como forma de reflectir, de interrogar-me, para acusar determinados escândalos ou erros. A religião, a morte, a honra e o sofrimento são os grandes temas da vida que me fazem escrever. A classe social na qual me inspiro é o sub-proletariado. As minhas famílias não são abastadas, nem burguesas, são praticamente analfabetas. As personagens dos meus espectáculos são capazes de fazer um discurso inteiro sem nunca abrir a boca. Através dos gestos constróiem um linguagem universal, de um modo informal e nada convencional. Esta ignorância e má educação permitem-me meter-lhes na boca grandes pensamentos e ideais. As minhas personagens são delirantes, mas são puros. Escrevo para eles, com eles, porque os encontro todos os dias no meio da rua.

Sobre os espectáculos

Carnezzeria

“Carnezzeria” traz-nos a Sicília e os seus costumes, a sua violência escondida, como uma prisão que fecha os seus habitantes e que impõe uma revolução tão grande como o sofrimento que se faz sentir. Aqui vemos a miséria, a humilhação, o incesto e a violação, espelhados nos seus rituais. A peça conta-nos de três irmãos e uma irmã que sofre de deficiência mental e que estão envolvidos num jogo de memória e de conflitos. São protagonistas de uma história familiar com ligações bastante mórbidas e paralizantes. A transparência do vestido branco de Nina mostra-nos a sua gravidez e a tristeza do seu olhar mostra-nos um coração perdido num corpo enorme, deformado pela dor e pelo pecado. Ela está inchada, a sua barriga, o seu destino: ambos foram deformados pelos irmãos que se atiram a ela pela raiva que sentem. Sexo, propriedade, luta e pertenças que são geradoras de movimentos de uma terrível bestialidade que transforma este espectáculo numa cerimónia que foi colocada em cena para absolver Nina do pecado. Esta cerimónia servirá para reparar o erro, recuperar a honra do filho bastardo e polir a mancha que se espalha tanto pelo seu corpo como pela sua história e alma.
Emma Dante diz-nos sobre esta peça, referindo toda aquela bestialidade que refere em entrevista, mostrando a sua capacidade de análise de uma sociedade que é aquela em que vive: «Vi na face das pessoas olhos de lagarta, escondidos atrás das pálpebras; olhos de cavalo injectados de sangue ; e olhos de vaca, luminosos e humedecidos, com uma beleza interior desoladora. Eram homens massacrados, arrancados de si próprios e de uma vida maçadora. Animais com medo e perigosos, que com a sua própria capacidade de participar no sofrimento, foram perdendo com o tempo a familiaridade com tudo o que é humano. Como chegar perto de um mundo de bestas? Como entrar na cabeça de um cão ferido sem se contagiar com a raiva? Como ouvir os pequenos sussurros de um rato de esgoto e escutar em silêncio para não interferir com os acontecimentos? Como ser um porco e ver na lama as coisas como ele as vê?»

Vita mia

O público entra e encontra um quarto vazio, apenas com uma cama ao centro. O quarto não é confortável, tem um ambiente denso. Um buraco negro, um salto para o vazio. A mãe olha para os seus três filhos com doçura e tristeza, passa-lhes o ensinamento de que a vida é efémera e por isso tão preciosa. A vida é uma corrida à volta desta cama: será um refúgio, um espaço de tranquilidade e repouso, um início ou um fim em si mesmo? Este quarto e esta cama transbordam tristeza e loucura. “É o lugar onde, por um instante, a alma é suspensa no ar antes de se desprender do corpo.”
A mãe vacila, está inquieta, desesperada. Vira a cabeça e olha-os, um a um, os homens que habitam aquela casa, aquele quarto. Como fará ela para o deixar partir? Onde buscará a coragem para o vestir, lhe sussurrar palavras de amor e depois entregá-lo à morte? Como conseguirá vê-lo partir, sabendo que vai para um lugar incerto, mas que não voltará? Porquê o mais novo, aquele que está menos preparado?
Tudo está imóvel: os gestos, as recordações, as palavras de conforto, os remorsos, a última pulsação do coração que se repete pelo infinito. Este espectáculo é uma vigília fúnebre, é nada mais nada menos que uma tentativa de adiar esta dança que antecede a morte, que transborda de loucura. Um olhar sobre a história através dos olhos da personagem.

Mishelle di Sant’Oliva

Ela era uma bela mulher, a primeira bailarina do Olympia de Paris, alta, loira, com a pele doce como a seda, e, mais importante que tudo o resto, com um olhar que a colocava num pedestal e todos aqueles que eram observados por ela tão pequenos. Foi-se embora. Esta peça conta-nos uma história passada no bairro das prostitutas situado perto de Sant’Oliva. Ali Gaetano e Salvatore Lucchese, sentados nas suas cadeiras, esperam Mishelle. Mishelle partiu abandonado o filho e o marido.
Salvatore, o filho, é um transformista. Gaetano, o pai, recusa-se a encarar o seu filho. Salvatore, em traje de festa deixa cair a cabeça sobre o peito. O tempo foi, é e continuará a ser pouco importante. Desde há muito que ele procura em si a feiticeira que bailava tão suavemente e o corpo encantador que Mishelle tinha, mas o seu é tão disforme, que o enraivece. No ar há sempre recordações, memórias perdidas que são trazidas pelo vento. O filho como um cão amarrado está sentado de coxas abertas em frente à parede. Há dez anos que o pai lhe vira as costas e todas as noites, à luz da lua, transforma-se. “Quando a transformação está concluída, no pequeno quarto abafado, ela lança um perfume desesperado de Primavera, de flores, que Gaetano não consegue suportar. Mishelle está pronta: rude, dura, pesada, vibra com uma alegria clandestina.” Apesar das suas pernas pesadas e disformes, Mishelle avança sempre de cabeça erguida e sai, dando primeiro um beijo casto na testa do pai e, sem vergonha, vai percorrer a rua de Sant’Oliva.
Artigo publicado no Jornal Semanário - Fevereiro 2008

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